sexta-feira, 6 de março de 2015

Violência: Estados repressores estão na base do contexto de insegurança

Por Marcela Belchior da Adital


A organização de direitos humanos Anistia Internacional lançou, recentemente, um relatório que aponta que, no ano de 2014, a América Latina sentiu, profundamente, um aumento da insegurança e conflitos com a violência.

Esse contexto se agudiza, especialmente, nas circunstâncias de vulnerabilidade das populações da região às redes criminosas, que envolvem, na maioria das vezes, a participação ativa de agentes públicos do Estado, que deveriam zelar pelos direitos dos latino-americanos.

Para interpretar esse contexto, a Adital entrevistou, com exclusividade, o cientista político e assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional Brasil, Maurício Santoro. Ele explica que pontos comuns entre as nações do continente — como a segurança pública militarizada, as instituições policiais marcadas pela falta de transparência, impunidade e repressão seletiva a minorias — são algumas razões para a construção desse cenário.

Outro grave problema cada vez mais presente na região é a repressão ao ativismo de direitos humanos, manifestada especialmente na perseguição a militantes envolvidos na defesa dos recursos naturais da América Latina, minorias étnicas e sexuais. Nesse contexto, os Estados figuram como repressores das iniciativas populares, erodindo o espaço democrático na América Latina.

Por outro lado, Santoro aponta que os movimentos por direitos humanos na região têm conquistado cada vez mais sofisticação e organização, e galgado maior presença nas instituições públicas, uma conquista recente que tem levado cada vez mais gente às ruas. Confira a entrevista:

ADITAL - O recente relatório, lançado pela Anistia Internacional, aponta que, no ano de 2014, houve aumento da insegurança, de conflitos com violência e da repressão institucional, em muitos países da América Latina, entre eles Brasil, Venezuela e México. Que causas podemos observar nesse contexto de uso multilateral da violência e da falta de segurança na região?

Maurício Santoro - Há várias razões, com pesos diferentes para cada país, mas um dos pontos comuns é um modelo de segurança pública militarizado, baseado no enfoque da "guerra às drogas”, com consequências muito negativas para os direitos humanos. As polícias latino-americanas são, em geral, instituições marcadas pela falta de transparência, impunidade e por diversos episódios com a população mais pobre, sobretudo as de origem negra ou indígena. A região também se destaca por um alto número de homicídios, dos quais poucos são investigados a fundo, com a punição dos responsáveis. Outro problema conjunto é um quadro de perseguição e violência contra ativistas de direitos humanos, em particular aqueles cuja militância se dá em situações de conflitos por recursos naturais — terra, mineração — ou da proteção de minorias étnicas e sexuais (ver penúltima pergunta).

ADITAL - O Estado é apontado como repressor das iniciativas populares. Como esse papel vem sendo desenrolado nos países latino-americanos? A democracia vem sofrendo com Estados truculentos na região?

MS - Há uma preocupante erosão do espaço democrático na América Latina, impulsionada pela repressão dos Estados a protestos e com tentativas de criminalizar movimentos sociais e ativistas de direitos humanos.

ADITAL - Além desse papel do Estado, como ele colabora para a projeção e manutenção de um contexto de insegurança e violência?

MS - As políticas de segurança pública na região, com frequência, pioram a situação dos direitos humanos, com a persistência de prisões arbitrárias, torturas, assassinatos e desparecimentos forçados, cometidos por policiais e militares, em contexto de grande impunidade. A abordagem de guerra às drogas leva a violações contra setores mais pobres e discriminados da população, tratados como suspeitos pelas autoridades, como ocorre com moradores de favelas e bairros de periferia.

No período da Copa do Mundo no Brasil, em 2014, o Estado se utilizou da violência física e política para cercear protestos da população. Foto: Reprodução.

ADITAL - Para não cairmos na generalização da América Latina, podemos apontar onde essas circunstâncias podem ser mais observadas?

MS - A Anistia Internacional não elabora rankings de direitos humanos, sobre quais países estão, supostamente, melhores ou piores na comparação uns com os outros. Preferimos trabalhar com casos individuais expressivos. Nesse sentido, podemos apontar exemplos ilustrativos dos dramas de direitos humanos na América Latina: o desaparecimento dos 43 estudantes na cidade de Iguala, no México; a persistência do longo conflito armado na Colômbia, com seus terríveis impactos para a população civil; diversas chacinas (Complexo da Maré [Rio de Janeiro], Belém do Pará, Cabula [Salvador, Bahia]) no Brasil; a perseguição a líderes da oposição na Venezuela; as consequências da proibição total do aborto em El Salvador e Nicarágua.

ADITAL - Ainda assim, podemos dizer que os movimentos sociais em defesa dos direitos humanos estão mais organizados?

MS - Na comparação com o período autoritário, impressiona o nível de desenvolvimento e sofisticação dos movimentos por direitos humanos na América Latina; em grande medida, uma conquista recente, desde a redemocratização da região iniciada em meados da década de 1980.

ADITAL - A população da região está mais nas ruas?

MS - Sim. Nos últimos anos, vimos grandes manifestações em países como Argentina, Brasil, México e Venezuela, entre outros. Infelizmente, com frequência, esses protestos têm sido reprimidos de maneira brutal pelas forças de segurança, numa perigosa erosão das liberdades democráticas.

ADITAL - A discussão sobre a defesa dos direitos humanos está mais presente tanto nas instituições públicas quando na sociedade civil?

MS - Em grande medida. Muitos países da América Latina, hoje, têm Constituições que dão grande espaço para direitos humanos, as leis sobre o tema foram aprimoradas e instituições oficiais criadas para lidarem com algumas das demandas com respeito aos direitos. Contudo, há diversos pontos que permanecem muito frágeis, como a legislação sobre direitos sexuais e reprodutivos — o tratamento do aborto, homofobia etc. Em muitas nações da região, os crimes das ditaduras seguem impunes. Alguns líderes políticos incitam a população contra direitos humanos, instigam discriminação contra minorias e tentam passar leis que cerceiam os DH.

População mexicana tem ido às ruas exigir solução para o desaparecimento de 43 estudantes na cidade de Iguala. Foto: Giulia Iacolutti.


ADITAL - Quais direitos humanos são mais violados na região? Podemos apontar o contexto político-econômico que provoca essas violações?

MS - Em nosso relatório, listamos uma série de casos de violações de direitos humanos na América Latina, tais como situações de violência policial, repressões a protestos, criminalização do aborto, perseguições a defensores de DH, restrições à liberdade de expressão, discriminação contra negros e indígenas, agressões a ativistas LGBT [Lésbicas Gays, Bissexuais e Transexuais]. Essas violências foram mantidas mesmo no contexto do expressivo crescimento econômico e redução de pobreza na região, ao longo dos últimos anos.

ADITAL - Movimentos sociais, defensoras e defensores dos direitos humanos e comunicadores são alvos frequentes da repressão institucional, seja do Estado, seja da iniciativa privada. Esse contexto ainda é silenciado para o restante da população?

MS - Há muitas tentativas de calar os defensores de direitos humanos na América Latina ou cercear sua ação junto à sociedade. Esses ataques vão desde condenações ao seu trabalho em declarações de autoridades (pretendendo, assim, deslegitimá-los perante a opinião pública) até atos de intimidação, ameaças e violências. Crimes contra eles raramente são investigados e punidos.

ADITAL - Como os movimentos sociais em defesa dos direitos humanos devem se portar diante de tais circunstâncias?

MS - Nosso trabalho é no sentido de cobrar o respeito pelos direitos humanos por parte do Estado. Acreditamos que cada movimento social deve optar pelos caminhos que julgarem melhores.

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Marcela Belchior

É jornalista da Adital. Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), estuda as relações culturais na América Latina.
E-mail:
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belchior.marcela@gmail.com