Com este artigo da série sobre a relação
da imprensa com o poder, o autor pretende contribuir para que se dê um
adeus às ilusões e se alcance a consciência de que a mídia hegemônica
brasileira não se transformará por dentro. Ou se constituem outras
vozes, outros polos, ou estaremos sempre submetidos ao discurso único,
com uma visão de mundo da direita.
Castelo Branco, primeiro presidente pós-golpe, acompanhado de militares em São Paulo
Foto: Domício Pinheiro/Agência Estado
(...) A burguesia fez a apoteose da espada; a espada
a domina. Destruiu a imprensa revolucionária; sua
própria imprensa foi destruída. Colocou as reuniões
populares sob a vigilância da polícia; seus salões
estão sob a vigilância da polícia. Dissolveu a Guarda
Nacional democrática; sua própria Guarda Nacional foi
dissolvida. Impôs o estado de sítio; o estado de sítio
foi-lhe imposto. (...) Desterrou pessoas sem julgamento;
está sendo desterrada sem julgamento. (...) A burguesia
não se cansava de gritar à revolução o que
Santo Arsênio gritou aos cristãos:
“Fuge, tace, quiesce!” (Foge, cala, sossega!). Agora é Bonaparte que grita à burguesia: “Fuge, tace, quiesce!”
MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann.
Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra,
1974, 2ª edição, pág. 111.
Aquilo que o mundo ocidental entendeu como jornalismo, para além de sua inevitável natureza de classe e de sua também inevitável condição de participante ativo da luta política, cultural e ideológica dos povos, comportou, em seu desenvolvimento a partir do século 19, algum grau de compromisso com a verdade, com a busca da verdade ao menos; com o respeito pelos fatos, por mais que eles sempre invoquem interpretação; alguma preocupação com um olhar múltiplo, que não permita uma única opinião sobre o acontecimento. O que poderia ser chamada de uma visão liberal-capitalista do jornalismo, que raramente se completou no Brasil e é ainda mais rara nos dias de hoje.
O fato de uma visão, chamemos assim, moderna de jornalismo ter nos alcançado ali pelo final dos anos 40 do século passado, com as novas técnicas do lead, da pirâmide invertida, tão proclamada como inovação, se nos ajudou na arquitetura das notícias, se suplantou o chamado nariz de cera, não modificou em nada o cenário ideológico, político de nossa imprensa, e naquele tempo, falamos agora dos anos 50 e 60 do século 20, falar em imprensa era mais próprio do que hoje porque o domínio era do jornalismo impresso. Eram os grandes jornais, sobretudo, ao lado das emissoras de rádio, que formavam opinião, embora a ideia de formação de opinião demande muitas discussões, mas vá lá que seja. A televisão apenas engatinhava.
Com a chegada da noção de pirâmide invertida, com a ideia do lead, com a síntese do fato no primeiro parágrafo, respondendo às perguntas clássicas do quem, como, quando, onde e por quê, eliminou-se o famoso nariz de cera, obrigatória maneira de iniciar qualquer matéria, que correspondia a uma espécie de introdução para depois chegar ao fato propriamente dito. Era uma enrolação, descartada pelas novas técnicas do jornalismo, que propunham que se fosse diretamente ao assunto, facilitando-se assim a vida do leitor. E daí? Tudo muito bem, tudo muito certo, um bom avanço técnico. Era possível com isso, no entanto, descartar o uso político-ideológico do jornalismo? Evidentemente, não. E as décadas de 1950 e 1960, no Brasil, são a maior evidência disso.
Nos textos anteriores, tratei basicamente de episódios que envolveram a colaboração e participação ostensivas da imprensa nos episódios que culminaram com a tentativa de golpe contra Getúlio Vargas e seu suicídio, entremeados com a notável história de Última Hora, esforço contra-hegemônico da imprensa daquele período. Aqui me dedico a dar duas ou três palavras em torno do envolvimento profundo da mídia brasileira de então na articulação do golpe de 1964. Tenho a pretensão de, aligeiradamente, contribuir para que se dê um adeus às ilusões, para que se alcance a consciência de que a mídia hegemônica brasileira não se transformará por dentro. Ou se constituem outras vozes, outros polos, ou estaremos sempre submetidos ao discurso único, com uma visão de mundo da direita.
O jornal Correio da Manhã talvez seja a personificação trágica dos dilemas burgueses – em momentos de crise, acreditam que ditaduras podem ser a solução momentânea, para que depois, e rapidamente, retomem o controle e permitam, então, a volta da democracia, mais domesticada. Marx dizia mais ou menos isto: a burguesia chama a espada e depois a espada se volta contra ela – está lá, em O 18 Brumário. Sem tirar nem pôr, foi o que aconteceu com o Correio da Manhã, nascido em 1901, opositor de Getúlio desde sempre, de Juscelino, de Goulart, decisivo para o desencadeamento do golpe de 1964, uma ditadura que perdurou por 21 anos e acabou por determinar o fim do Correio da Manhã, que quis, logo que o golpe mostrou as garras, enfrentar a espada e foi ao chão, deixando de circular em 1974.
Falo do Correio da Manhã para lembrar que o golpe de 1964 contou com a participação decisiva da imprensa brasileira, que não aceitava de modo nenhum o governo reformista de João Goulart, o qual, sem dúvida, encarnava o getulismo, espectro que ainda atormentava os barões da mídia de então. Com aquele projeto político a imprensa não concordava, tinha outro projeto para o país, e por este se batia, sem que se importasse com critérios jornalísticos liberais, aqueles aos quais me referi no início deste texto.
Não havia nenhuma importância se no lugar dele viesse uma ditadura. Melhor seria. Se não fosse possível derrotar “a república sindicalista” pelas urnas, se não era possível emplacar a UDN no poder, qualquer coisa seria preferível, mesmo que fosse a espada. Ainda mais uma vez, podemos lembrar Marx, também em O 18 Brumário: “Antes um fim com terror do que um terror sem fim”, como gritava o burguês francês, clamando pela espada. Nesse caso, entre o voto e o golpe, a mídia de então preferiu o golpe, e se juntou articuladamente com os militares golpistas para fazer 1964. Que viesse a espada. Mesmo que depois – sem que o soubesse antes – sentisse a lâmina fina entrando no próprio ventre.
Tratava-se, e não se imagine nenhuma inocência nisso, qualquer espontaneidade, quaisquer laivos de jornalismo em sentido estrito, aqueles próprios da escola liberal, tratava-se de criar um clima de pânico, mostrar a existência de uma perigosa, aterrorizante república sindicalista, atemorizar e conclamar os latifundiários à ação com o espectro da reforma agrária, amedrontar as camadas médias com as incômodas greves, chamar a massa de católicos para se opor às reformas que Goulart pretendia fazer, trazer para a reação instituições como a Igreja Católica, então muito suscetível a isso, assustar a todos com as ameaças, não importa se verdadeiras, em relação à propriedade privada, sacrossanta propriedade privada, que estaria em risco.
Tudo isso foi feito de comum acordo. Os maiores jornais do país, sobretudo aqueles do Centro-Sul, onde se localiza o quartel-general da mídia golpista, e os militares, com os quais os dirigentes da imprensa se reuniam. Thomas Skidmore diz que o golpe de 1964 foi festejado pela maior parte da mídia brasileira, citando os jornais que lutavam abertamente pela deposição do governo Goulart: Jornal do Brasil, Correio da Manhã, O Globo, Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo, além da cadeia de revistas, jornais e emissoras de rádio dos Diários Associados. Havia uma ordem unida para tanto, e ponto final. Não se trata de teoria conspiratória. Tratava-se de conspiração na qual a imprensa brasileira estava metida dos pés à cabeça.
Assim, sei, não estou dizendo novidades, mas reavivando a memória, sobretudo, para os que se assustam com os movimentos ousados, e golpistas, da mídia atual contra o projeto político iniciado com a vitória de Lula em 2002, e especialmente contra o ex-presidente, pelo qual a mídia brasileira, salvo sempre as pouquíssimas exceções, nutre um especial ódio de classe e contra o qual desenvolve um jornalismo de campanha ininterrupto.
O que se pode dizer, para não incorrermos em transposições históricas equivocadas, é que não há clima, nesse momento, para golpes militares numa América Latina marcada pela crescente intervenção dos povos, que tem seguidamente eleito governantes de esquerda de variados matizes. A mídia golpista, no entanto, não descansa, e isso não podemos esquecer nem subestimar.
Quando não tem a perspectiva do voto, quando a UDN perde força, quando o PSDB definha, quando o DEM quase desaparece, quando um PPS ex-comunista vira correia de transmissão da extrema direita, a mídia flerta com o crime, digo, com o golpe, venha ele de onde vier, se puder vir, e não creio que possa. E flertar com o crime, nos dias de hoje, não é apenas uma metáfora – basta lembrar as conexões profundas entre a quadrilha do Cachoeira e a revista Veja.
Pode acontecer de as novas gerações, inclusive as que estudam nas nossas escolas de comunicação, marcadas às vezes por recusa a discussões com o ângulo político que escolho aqui, nem sequer conhecerem esses fatos ou, noutra hipótese, não concordarem com minha visão, quem sabe tida no território das mal-afamadas teorias da conspiração, como se à mídia fosse vedada qualquer conspiração por força de seus ideais liberais e sua diversidade. Balela. Ela se articula, defende posições e, em muitos casos, conspira, como é o caso de que estamos tratando, o golpe de 1964.
E, vá lá que seja, que desconfiar é sempre bom para quem estiver pesquisando, para quem se dedica ao estudo de quaisquer períodos históricos, quem sabe convença mais a palavra de uma fonte mais acreditada, em entrevista publicada no livro A Censura Política na Imprensa Brasileira – 1968-1978, do jornalista Paolo Marconi. Ruy Mesquita, então diretor e coproprietário de O Estado de S. Paulo, dá a entrevista a que me refiro no mês de outubro de 1974.
Ele afirma que o único recurso para se opor ao que chamava conspiração de Goulart era o golpe – desculpe, Revolução, com maiúscula, que era como ele chamava o golpe. Mas me permitam continuar chamando 64 como golpe, mais próprio. Para fazer justiça, ele disse, então, que sabia que no dia seguinte estaria contra o novo governo ditatorial, embora seja uma declaração que não deva ser levada ao pé da letra porque não foi bem assim. De qualquer forma, outra vez, é preferível chamar a espada a qualquer coisa parecida com governos progressistas.
Confessa: ele e o pai, Júlio de Mesquita Filho, morto em 1969, participaram ativamente das articulações golpistas que redundaram no golpe de 1964 – “tínhamos reuniões diárias com militares que se opunham à situação e que acabaram derrubando Goulart”. Será necessário um testemunho mais idôneo, confiável, veraz do que esse para demonstrar o quanto a mídia brasileira se empenhou para implantar o regime de terror e morte que foi a ditadura militar?
E, como a família Mesquita, também conspiravam Chateaubriand, os Marinho, os Breno Caldas, os Frias, os Nascimento Brito, todos os chefes de família da mídia brasileira, interessados no golpe, os grandes e os pequenos, porque havia jornais pelos estados comungando com aqueles objetivos, todos na conspiração contra um governo legítimo, que cometia o pecado de querer fazer reformas, porque queria ser soberano diante dos EUA.
Não pretendo fazer um estudo de caso sobre a intervenção da imprensa brasileira no golpe de 1964. Reavivo a memória para afirmar, nem que como obviedade, que a imprensa brasileira, como o fará em várias outras ocasiões, mandou o jornalismo liberal às favas, embora se escondesse atrás dele, e atuou como um autêntico partido político, um partido conservador, defensor dos interesses dos EUA e das classes dominantes nacionais. Claramente um partido que se colocava contra os interesses populares, como o faz até os dias de hoje, sem nenhum pudor, sem esforço algum para desenvolver um jornalismo próximo do que pregam seus próprios manuais.
Volto ao Correio da Manhã, naquele momento o mais influente diário brasileiro, apenas para lembrar os históricos editoriais do dia 31 de março de 1964:
Basta!
E o de 1º de abril do mesmo ano:
Fora!
Esses títulos indicam a natureza partidária de direita da imprensa da época, impositiva, prescritiva, senhora da razão, dona do discurso. É como se fornecesse uma senha aos golpistas, aliás, já em marcha sob a direção da “vaca fardada”, apelido atribuído por Olímpio Mourão Filho a ele mesmo, que saíra com seus soldados de Minas Gerais, em 31 de março, para o Rio de Janeiro com o objetivo de consumar o golpe. O clima estava criado, as condições estavam dadas – era esse o recado da imprensa. Aquela ideia do jornalismo liberal, avessa aos pontos de exclamação, do jornalismo objetivo, foi mandada às favas, como se vê.
Era uma exortação prévia e uma comemoração, já que os jornais sabiam o que estava por vir, o que estava na iminência de ocorrer, não importando, como já dito, as consequências do golpe, o que a espada viria a fazer, o sangue que correria, as torturas que viriam, o terror estatal que sobreviria, os 21 anos que atingiriam inclusive os jornais, esses mesmos que chamaram a espada, que de alguma maneira também serão atingidos, embora nunca tenham sido tão violentados como o foram aqueles que resolveram se opor efetivamente à ditadura.
É sabido e consabido que o Correio da Manhã, muito mais que o Estadão, ato contínuo, iniciou a luta contra as atrocidades da espada, que vieram muito mais cedo do que a imprensa golpista acreditava e cujo domínio duraria muito mais do que ela esperava. A maldição do bruxo do século 19 persistia, assustadora. E, ao levantar-se contra a espada, o Correio da Manhã em pouquíssimo tempo desapareceria. Antes que pudesse ver o retorno à democracia, que só viria em 1985, com a eleição indireta de Tancredo Neves à Presidência da República.
Não sei se dirigentes da imprensa brasileira chegaram, em algum momento, a viver alguma crise de consciência pelo monstro que produziram, ou se resolveram apascentar a alma com a ideia de que não tiveram culpa no que houve a seguir. Pelo visto, pelo que continuam a fazer, a crise nem sequer lhes resvalou a alma. Fosse lhes dada a chance, e repetiriam a dose. Com gosto. Não recolheram lições do episódio, ainda. Nem sei se há qualquer perspectiva de que venham a fazê-lo.
A tragédia do burguês que clama à chegada da espada para resolver seus dilemas se apresentava com todas as suas cores, dramáticas cores, para o Correio da Manhã. O chamamento à espada é sempre arriscado. Sempre. Melhor arriscar tudo na democracia. A mídia brasileira ainda não aprendeu a arriscar tudo na democracia. Aposta sempre no golpe, de um jeito ou de outro. Pode não ter chance, mas, que sempre tenta, tenta. Essa índole ninguém pode lhe negar. O espírito golpista é parte de sua natureza.
Referências bibliográficas
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Emiliano José é professor doutor (aposentado) em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia, jornalista, escritor e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate