sexta-feira, 29 de março de 2013

Espada no ventre

Com este artigo  da série sobre a relação da imprensa com o poder, o autor pretende contribuir para que se dê um adeus às ilusões e se alcance a consciência de que a mídia hegemônica brasileira não se transformará por dentro. Ou se constituem outras vozes, outros polos, ou estaremos sempre submetidos ao discurso único, com uma visão de mundo da direita.

Castelo Branco, então presidente do país, acompanhado de militares em São Paulo
Castelo Branco, primeiro presidente pós-golpe, acompanhado de militares em São Paulo
Foto: Domício Pinheiro/Agência Estado

(...) A burguesia fez a apoteose da espada; a espada
a domina. Destruiu a imprensa revolucionária; sua
própria imprensa foi destruída. Colocou as reuniões
populares sob a vigilância da polícia; seus salões
estão sob a vigilância da polícia. Dissolveu a Guarda
Nacional democrática; sua própria Guarda Nacional foi
dissolvida. Impôs o estado de sítio; o estado de sítio
foi-lhe imposto. (...) Desterrou pessoas sem julgamento;
está sendo desterrada sem julgamento. (...) A burguesia
não se cansava de gritar à revolução o que
Santo Arsênio gritou aos cristãos:
“Fuge, tace, quiesce!” (Foge, cala, sossega!). Agora é Bonaparte que grita à burguesia: “Fuge, tace, quiesce!”


MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann.
Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra,
1974, 2ª edição, pág. 111.

Aquilo que o mundo ocidental entendeu como jornalismo, para além de sua inevitável natureza de classe e de sua também inevitável condição de participante ativo da luta política, cultural e ideológica dos povos, comportou, em seu desenvolvimento a partir do século 19, algum grau de compromisso com a verdade, com a busca da verdade ao menos; com o respeito pelos fatos, por mais que eles sempre invoquem interpretação; alguma preocupação com um olhar múltiplo, que não permita uma única opinião sobre o acontecimento. O que poderia ser chamada de uma visão liberal-capitalista do jornalismo, que raramente se completou no Brasil e é ainda mais rara nos dias de hoje.
  
O fato de uma visão, chamemos assim, moderna de jornalismo ter nos alcançado ali pelo final dos anos 40 do século passado, com as novas técnicas do lead, da pirâmide invertida, tão proclamada como inovação, se nos ajudou na arquitetura das notícias, se suplantou o chamado nariz de cera, não modificou em nada o cenário ideológico, político de nossa imprensa, e naquele tempo, falamos agora dos anos 50 e 60 do século 20, falar em imprensa era mais próprio do que hoje porque o domínio era do jornalismo impresso. Eram os grandes jornais, sobretudo, ao lado das emissoras de rádio, que formavam opinião, embora a ideia de formação de opinião demande muitas discussões, mas vá lá que seja. A televisão apenas engatinhava.
  
Com a chegada da noção de pirâmide invertida, com a ideia do lead, com a síntese do fato no primeiro parágrafo, respondendo às perguntas clássicas do quem, como, quando, onde e por quê, eliminou-se o famoso nariz de cera, obrigatória maneira de iniciar qualquer matéria, que correspondia a uma espécie de introdução para depois chegar ao fato propriamente dito. Era uma enrolação, descartada pelas novas técnicas do jornalismo, que propunham que se fosse diretamente ao assunto, facilitando-se assim a vida do leitor. E daí? Tudo muito bem, tudo muito certo, um bom avanço técnico. Era possível com isso, no entanto, descartar o uso político-ideológico do jornalismo? Evidentemente, não. E as décadas de 1950 e 1960, no Brasil, são a maior evidência disso.

Nos textos anteriores, tratei basicamente de episódios que envolveram a colaboração e participação ostensivas da imprensa nos episódios que culminaram com a tentativa de golpe contra Getúlio Vargas e seu suicídio, entremeados com a notável história de Última Hora, esforço contra-hegemônico da imprensa daquele período. Aqui me dedico a dar duas ou três palavras em torno do envolvimento profundo da mídia brasileira de então na articulação do golpe de 1964. Tenho a pretensão de, aligeiradamente, contribuir para que se dê um adeus às ilusões, para que se alcance a consciência de que a mídia hegemônica brasileira não se transformará por dentro. Ou se constituem outras vozes, outros polos, ou estaremos sempre submetidos ao discurso único, com uma visão de mundo da direita.


O jornal Correio da Manhã talvez seja a personificação trágica dos dilemas burgueses – em momentos de crise, acreditam que ditaduras podem ser a solução momentânea, para que depois, e rapidamente, retomem o controle e permitam, então, a volta da democracia, mais domesticada. Marx dizia mais ou menos isto: a burguesia chama a espada e depois a espada se volta contra ela – está lá, em O 18 Brumário. Sem tirar nem pôr, foi o que aconteceu com o Correio da Manhã, nascido em 1901, opositor de Getúlio desde sempre, de Juscelino, de Goulart, decisivo para o desencadeamento do golpe de 1964, uma ditadura que perdurou por 21 anos e acabou por determinar o fim do Correio da Manhã, que quis, logo que o golpe mostrou as garras, enfrentar a espada e foi ao chão, deixando de circular em 1974.
  
Falo do Correio da Manhã para lembrar que o golpe de 1964 contou com a participação decisiva da imprensa brasileira, que não aceitava de modo nenhum o governo reformista de João Goulart, o qual, sem dúvida, encarnava o getulismo, espectro que ainda atormentava os barões da mídia de então. Com aquele projeto político a imprensa não concordava, tinha outro projeto para o país, e por este se batia, sem que se importasse com critérios jornalísticos liberais, aqueles aos quais me referi no início deste texto.

Não havia nenhuma importância se no lugar dele viesse uma ditadura. Melhor seria. Se não fosse possível derrotar “a república sindicalista” pelas urnas, se não era possível emplacar a UDN no poder, qualquer coisa seria preferível, mesmo que fosse a espada. Ainda mais uma vez, podemos lembrar Marx, também em O 18 Brumário: “Antes um fim com terror do que um terror sem fim”, como gritava o burguês francês, clamando pela espada. Nesse caso, entre o voto e o golpe, a mídia de então preferiu o golpe, e se juntou articuladamente com os militares golpistas para fazer 1964. Que viesse a espada. Mesmo que depois – sem que o soubesse antes – sentisse a lâmina fina entrando no próprio ventre.
  
Tratava-se, e não se imagine nenhuma inocência nisso, qualquer espontaneidade, quaisquer laivos de jornalismo em sentido estrito, aqueles próprios da escola liberal, tratava-se de criar um clima de pânico, mostrar a existência de uma perigosa, aterrorizante república sindicalista, atemorizar e conclamar os latifundiários à ação com o espectro da reforma agrária, amedrontar as camadas médias com as incômodas greves, chamar a massa de católicos para se opor às reformas que Goulart pretendia fazer, trazer para a reação instituições como a Igreja Católica, então muito suscetível a isso, assustar a todos com as ameaças, não importa se verdadeiras, em relação à propriedade privada, sacrossanta propriedade privada, que estaria em risco.



Tudo isso foi feito de comum acordo. Os maiores jornais do país, sobretudo aqueles do Centro-Sul, onde se localiza o quartel-general da mídia golpista, e os militares, com os quais os dirigentes da imprensa se reuniam. Thomas Skidmore diz que o golpe de 1964 foi festejado pela maior parte da mídia brasileira, citando os jornais que lutavam abertamente pela deposição do governo Goulart: Jornal do Brasil, Correio da Manhã, O Globo, Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo, além da cadeia de revistas, jornais e emissoras de rádio dos Diários Associados. Havia uma ordem unida para tanto, e ponto final. Não se trata de teoria conspiratória. Tratava-se de conspiração na qual a imprensa brasileira estava metida dos pés à cabeça.

Assim, sei, não estou dizendo novidades, mas reavivando a memória, sobretudo, para os que se assustam com os movimentos ousados, e golpistas, da mídia atual contra o projeto político iniciado com a vitória de Lula em 2002, e especialmente contra o ex-presidente, pelo qual a mídia brasileira, salvo sempre as pouquíssimas exceções, nutre um especial ódio de classe e contra  o qual desenvolve um jornalismo de campanha ininterrupto.

O que se pode dizer, para não incorrermos em transposições históricas equivocadas, é que não há clima, nesse momento, para golpes militares numa América Latina marcada pela crescente intervenção dos povos, que tem seguidamente eleito governantes de esquerda de variados matizes. A mídia golpista, no entanto, não descansa, e isso não podemos esquecer nem subestimar.

Quando não tem a perspectiva do voto, quando a UDN perde força, quando o PSDB definha, quando o DEM quase desaparece, quando um PPS ex-comunista vira correia de transmissão da extrema direita, a mídia flerta com o crime, digo, com o golpe, venha ele de onde vier, se puder vir, e não creio que possa. E flertar com o crime, nos dias de hoje, não é apenas uma metáfora – basta lembrar as conexões profundas entre a quadrilha do Cachoeira e a revista Veja.

Pode acontecer de as novas gerações, inclusive as que estudam nas nossas escolas de comunicação, marcadas às vezes por recusa a discussões com o ângulo político que escolho aqui, nem sequer conhecerem esses fatos ou, noutra hipótese, não concordarem com minha visão, quem sabe tida no território das mal-afamadas teorias da conspiração, como se à mídia fosse vedada qualquer conspiração por força de seus ideais liberais e sua diversidade. Balela. Ela se articula, defende posições e, em muitos casos, conspira, como é o caso de que estamos tratando, o golpe de 1964.

E, vá lá que seja, que desconfiar é sempre bom para quem estiver pesquisando, para quem se dedica ao estudo de quaisquer períodos históricos, quem sabe convença mais a palavra de uma fonte mais acreditada, em entrevista publicada no livro A Censura Política na Imprensa Brasileira – 1968-1978, do jornalista Paolo Marconi. Ruy Mesquita, então diretor e coproprietário de O Estado de S. Paulo, dá a entrevista a que me refiro no mês de outubro de 1974.

Ele afirma que o único recurso para se opor ao que chamava conspiração de Goulart era o golpe – desculpe, Revolução, com maiúscula, que era como ele chamava o golpe. Mas me permitam continuar chamando 64 como golpe, mais próprio. Para fazer justiça, ele disse, então, que sabia que no dia seguinte estaria contra o novo governo ditatorial, embora seja uma declaração que não deva ser levada ao pé da letra porque não foi bem assim. De qualquer forma, outra vez, é preferível chamar a espada a qualquer coisa parecida com governos progressistas.

Confessa: ele e o pai, Júlio de Mesquita Filho, morto em 1969, participaram ativamente das articulações golpistas que redundaram no golpe de 1964 – “tínhamos reuniões diárias com militares que se opunham à situação e que acabaram derrubando Goulart”. Será necessário um testemunho mais idôneo, confiável, veraz do que esse para demonstrar o quanto a mídia brasileira se empenhou para implantar o regime de terror e morte que foi a ditadura militar?

E, como a família Mesquita, também conspiravam Chateaubriand, os Marinho, os Breno Caldas, os Frias, os Nascimento Brito, todos os chefes de família da mídia brasileira, interessados no golpe, os grandes e os pequenos, porque havia jornais pelos estados comungando com aqueles objetivos, todos na conspiração contra um governo legítimo, que cometia o pecado de querer fazer reformas, porque queria ser soberano diante dos EUA.



Não pretendo fazer um estudo de caso sobre a intervenção da imprensa brasileira no golpe de 1964. Reavivo a memória para afirmar, nem que como obviedade, que a imprensa brasileira, como o fará em várias outras ocasiões, mandou o jornalismo liberal às favas, embora se escondesse atrás dele, e atuou como um autêntico partido político, um partido conservador, defensor dos interesses dos EUA e das classes dominantes nacionais. Claramente um partido que se colocava contra os interesses populares, como o faz até os dias de hoje, sem nenhum pudor, sem esforço algum para desenvolver um jornalismo próximo do que pregam seus próprios manuais.

Volto ao Correio da Manhã, naquele momento o mais influente diário brasileiro, apenas para lembrar os históricos editoriais do dia 31 de março de 1964:

Basta!  

E o de 1º de abril do mesmo ano:   

Fora!

Esses títulos indicam a natureza partidária de direita da imprensa da época, impositiva, prescritiva, senhora da razão, dona do discurso. É como se fornecesse uma senha aos golpistas, aliás, já em marcha sob a direção da “vaca fardada”, apelido atribuído por Olímpio Mourão Filho a ele mesmo, que saíra com seus soldados de Minas Gerais, em 31 de março, para o Rio de Janeiro com o objetivo de consumar o golpe. O clima estava criado, as condições estavam dadas – era esse o recado da imprensa. Aquela ideia do jornalismo liberal, avessa aos pontos de exclamação, do jornalismo objetivo, foi mandada às favas, como se vê.

Era uma exortação prévia e uma comemoração, já que os jornais sabiam o que estava por vir, o que estava na iminência de ocorrer, não importando, como já dito, as consequências do golpe, o que a espada viria a fazer, o sangue que correria, as torturas que viriam, o terror estatal que sobreviria, os 21 anos que atingiriam inclusive os jornais, esses mesmos que chamaram a espada, que de alguma maneira também serão atingidos, embora nunca tenham sido tão violentados como o foram aqueles que resolveram se opor efetivamente à ditadura.


É sabido e consabido que o Correio da Manhã, muito mais que o Estadão, ato contínuo, iniciou a luta contra as atrocidades da espada, que vieram muito mais cedo do que a imprensa golpista acreditava e cujo domínio duraria muito mais do que ela esperava. A maldição do bruxo do século 19 persistia, assustadora. E, ao levantar-se contra a espada, o Correio da Manhã em pouquíssimo tempo desapareceria. Antes que pudesse ver o retorno à democracia, que só viria em 1985, com a eleição indireta de Tancredo Neves à Presidência da República.

Não sei se dirigentes da imprensa brasileira chegaram, em algum momento, a viver alguma crise de consciência pelo monstro que produziram, ou se resolveram apascentar a alma com a ideia de que não tiveram culpa no que houve a seguir. Pelo visto, pelo que continuam a fazer, a crise nem sequer lhes resvalou a alma. Fosse lhes dada a chance, e repetiriam a dose. Com gosto. Não recolheram lições do episódio, ainda. Nem sei se há qualquer perspectiva de que venham a fazê-lo.

A tragédia do burguês que clama à chegada da espada para resolver seus dilemas se apresentava com todas as suas cores, dramáticas cores, para o Correio da Manhã. O chamamento à espada é sempre arriscado. Sempre. Melhor arriscar tudo na democracia. A mídia brasileira ainda não aprendeu a arriscar tudo na democracia. Aposta sempre no golpe, de um jeito ou de outro. Pode não ter chance, mas, que sempre tenta, tenta. Essa índole ninguém pode lhe negar. O espírito golpista é parte de sua natureza.   

Referências bibliográficas
ANDRADE, Jeferson (com a colaboração de Joel Silveira). Um Jornal Assassinado: A Última Batalha do Correio da Manhã. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.
COTTA, Pery. Calandra – o Sufoco da Imprensa nos Anos de Chumbo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
JOSÉ, Emiliano. Jornalismo de Campanha e a Constituição de 1988. Salvador: Edufba, Assembleia Legislativa da Bahia, 2010.
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários – Nos Tempos da Imprensa Alternativa. São Paulo: Editorial Scritta, 1991.
MARCONI, Paolo. A Censura Política na Imprensa Brasileira (1968-1978). São Paulo: Global Editora, 1980.
MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Tradução de Mário Salviano Silva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
WAINER, Samuel. Minha Razão de Viver – Memórias de um Repórter. Rio de Janeiro: Record, 1988.

Emiliano José é professor doutor (aposentado) em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia, jornalista, escritor e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate

O silêncio dos inocentes

A comprovação da convivência da imprensa hegemônica com a ditadura desmonta a ideia de que toda a imprensa viveu sob censura prévia e de que ela sempre lutou contra a censura. Quando a grande mídia conta a história da ditadura, resultante do golpe militar de 1964, que ela articulou conscientemente e do qual participou decisivamente, muitas vezes exclui sua cota-parte na implantação daquele regime de terror e morte.


Com a abertura veio a certeza de que a mídia hegemônica foi cumplíce da ditadura
Com a abertura veio a certeza de que a mídia hegemônica foi cumplíce da ditadura
Foto: Arquivo Agência Estado

(...) A tradição histórica antidemocrática de transições pelo alto, que exclui a participação mais efetiva dos segmentos sociais explorados, tão característica da sociedade nacional, mais uma vez se impôs politicamente na passagem entre a ditadura e a democracia em 1985. Tal modo de transição comporta nítidas limitações em termos da democratização do país. É sempre bom lembrar que o sistema da grande imprensa (televisões, jornais, revistas, rádios etc), forjado na e pela ditadura cívico-
militar, permanece praticamente intocado até hoje, quase 25 anos depois do fim do regime democrático.
(...).”

RUBIM, Antonio Albino Canelas, em prefácio
ao livro de JOSÉ, Emiliano. Jornalismo de Campanha e a Constituição de 1988. Salvador: Edufba, Assembleia Legislativa da Bahia, 2010.


A mídia hegemônica brasileira, quando conta a história da ditadura, resultante do golpe militar de 1964, que ela articulou conscientemente e do qual participou decisivamente, o faz a seu modo, muitas vezes excluindo sua cota-parte na implantação daquele regime de terror e morte. É como se nada daquilo tivesse a ver com ela. O que é, obviamente, uma mistificação. Em outro momento dessa série, revelei a natureza golpista de sua intervenção naquele episódio, sua apaixonada participação na derrubada de um governo legítimo, como o de João Goulart. Ou como o de Getúlio Vargas. Preocupação com legitimidade ou legalidade nunca foi o seu forte.
  
Neste texto, discuto como se deu a convivência da imprensa hegemônica com a ditadura, de modo a desmontar a ideia de que toda a imprensa viveu sob censura prévia e de que ela sempre lutou contra a censura, e bravamente. Devagar com o andor, que o santo é de barro. Não é necessário muito conhecimento sobre o período de 1964 a 1985 para perceber que houve censura no Brasil. Disse censura, e não censura prévia. A existência da ditadura fala por si. Ninguém cria livremente sob um regime dessa natureza, ninguém escreve livremente numa fase dessas. Estamos no território das obviedades, necessárias, no entanto.
  
Antes ainda que se fale propriamente da relação entre a mídia hegemônica e a ditadura, aconselha-se a que situemos os diversos períodos da ditadura, rapidamente que seja. Entre 1964 e 1968, costumo dizer que a ditadura viveu um dilema hamletiano: ser uma ditadura pra valer, ou combinar ditadura e legalidade. A Constituição de 1967 foi um esforço para combinar legalidade com arbítrio, se é possível isso. Diante do início das mobilizações populares, particularmente do movimento estudantil, a ditadura resolve radicalizar, e acaba com seu dilema. Para não anistiar o período, lembremos que a ditadura já havia matado 39 pessoas.

O AI-5 evidencia que foi rompida qualquer dúvida: agora, era ditadura, sem tirar nem pôr, tempo em que o filho chorava e a mãe não via. A partir de 13 de dezembro de 1968, o tempo fechou. Tortura, mortes, desaparecimentos, fim de qualquer legalidade. Período de Médici, tempo de Murici, cada um cuide de si. Ditadura sem freios, se é possível freios em ditaduras. Aqui, nessa fase, o maior número de assassinatos e desaparecimentos.
  
Veio Geisel, em 1974, e a abertura lenta, gradual e segura. Início do que poderíamos chamar transição pactuada, e uma transição ainda marcada pela presença de prisões, torturas, desaparecimentos, e quando o estrato militar travou uma dura luta interna entre os que pretendiam, a médio prazo, passar da ditadura para um regime legal, e os que pretendiam radicalizar na violência e manter a ditadura.

Geisel venceu a parada, sem que, no entanto, parasse com os assassinatos. “Não podemos deixar de matar”, dissera ele em depoimento gravado, como revela o jornalista Élio Gaspari em um de seus livros sobre o período. A transição pretendida não foi a frio – foi a quente, regada a sangue, com muitas mortes, podendo-se lembrar o Massacre da Lapa, em 1976, quando foram mortos alguns e torturados outros tantos dirigentes do PC do B. Ou a repressão que se abateu sobre o PCB, que exterminou dez de seus dirigentes, e que matou Vladimir Herzog. E tantas outras prisões, de variadas organizações revolucionárias.

Veio Figueiredo, em 1979, e com ele, efetivamente, uma nova fase, quando a transição passou a caminhar mais aceleradamente, com mais liberdades, com a anistia que, mesmo parcial, inaugurou um novo momento no Brasil. Não há como desconhecer que a transição foi impulsionada pela constituição e mobilização de uma poderosa sociedade civil e, a partir do final da década de 1970, pela emergência de um movimento sindical de novo tipo, particularmente na região do ABC paulista, cresceu ainda mais. Lula surgia, com toda sua carga política e simbólica, um fato novo na história do Brasil. A ditadura não acabara, mas dava todos os sinais de que estava no fim.

A campanha pelas eleições diretas foi a pá de cal no velho regime. Constituiu-se na mais extraordinária movimentação de massas do país, e não só com o envolvimento das camadas populares, mas, também, com a participação de parcelas das classes dominantes, que já sentiam que a espada perdera sua eficácia e se constituía num entrave ao desenvolvimento de seus negócios.

No plano político, isso se expressou claramente: todo o PMDB, incluindo seus governadores, participou decisivamente da luta pelas Diretas e foi decisivo, como a esquerda brasileira também o fez, com muito entusiasmo. Não cabe aqui o detalhamento disso, por impróprio para os objetivos desse texto. Tomo apenas o cuidado de dizer que havia muitos setores de esquerda no interior do PMDB, para evitar simplificações e maniqueísmos.

A campanha foi derrotada, as Diretas não passaram pelo Congresso, mas foi determinante como sinalização definitiva para o fim da ditadura. Em 1985, Tancredo Neves é eleito indiretamente e, por ironia do destino, morre. José Sarney assume a Presidência da República, inaugurando o que hoje já podemos constatar como o maior período democrático de nossa história.

Agora, então, podemos discutir a relação entre a imprensa e a ditadura, e desmontar cenários idílicos, particularmente o que coloca, de um lado, uma imprensa liberal e sacrossanta que se alevantou contra o arbítrio militar e, de outro, militares e seus censores cruéis, sempre presentes nas redações, determinando tudo o que devia ou não devia ser editado.

Fosse essa a história, tão assim mocinhos e bandidos, e a imprensa hegemônica brasileira restaria absolvida de todas suas vacilações, incongruências, conivências, cumplicidades, complacência e colaboracionismo diante da ditadura. A história é bem outra. E vamos tentar contá-la.

Na primeira fase a que me referi – entre 1964 e 1968 – persiste o apoio dos grandes jornalões à ditadura, mesmo que aqui, acolá surgissem críticas. É inegável, no entanto, a afirmação de uma imprensa com capacidade crítica, que revelava autonomia e vitalidade. Podemos lembrar do Correio da Manhã, sobre o qual falamos mais demoradamente em artigo anterior; do jornal Zero Hora, de Porto Alegre; das revistas Fatos e Fotos, Veja e Realidade e, também, dos jornais Folha da Tarde e Última Hora, em São Paulo.

A conjuntura de uma ditadura que preservava algumas legalidades favorecia isso. Num juízo rigoroso, a imprensa hegemônica ainda não fora posta à prova pra valer. Isso aconteceria no pós-1968, com a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5). Aí, então, se tomaria conhecimento de quem era quem, se saberia quem topava enfrentar a ditadura ou não. E pode-se dizer, com tranquilidade, que a maioria não topou, deu o seu aval à ditadura e, para ser justo, o fez conscientemente, não apenas pela existência da censura. Tratou-se de uma reafirmação da posição hegemônica da mídia que, afinal, havia contribuído decisivamente, como já dito, para o golpe de 1964.

Do AI-5 em diante, e até o final dos anos 1970, predomina um padrão que Bernardo Kucinski denomina complacente, e que eu preferiria chamar de complacente-engajado, no sentido de que a mídia hegemônica, na esmagadora maioria dos casos, estava engajada no projeto da ditadura, fez uma opção política por ele. Nessa fase, os dois atores coabitavam com tranquilidade. A mídia não precisava de censores em suas redações, bastava um piscar de olhos dos generais, um simples bilhetinho, como era comum, às vezes de um funcionário subalterno, e ela se dispunha a pressurosamente obedecer. Não imaginem que exagero. Há uma vasta bibliografia a respeito, parte da qual está ao final desse texto.

Faço o alerta de Beatriz Kushnir em seu notável livro Cães de Guarda – Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988: não se queira que os jornalistas propriamente ditos estivessem a favor da ditadura ou, ao menos, que a maioria deles estivesse. O sistema, para recorrer a um palavrão antigo, os aprisionava. Dito de outra forma, os patrões, baseados em editores fiéis, exigiam aquela linha editorial, da qual não era possível fugir, ou era muito difícil fazê-lo. Quando podiam, os mais conscientes tentavam encontrar frestas por onde noticiar o que a boa consciência mandava.

O que predominou, ao contrário do que a interpretação dada hoje pretende, no entanto, não foi propriamente a censura, mas a autocensura. Diria que foi sendo construída uma rotina produtiva que já a incluía. Uma espécie de alter-ego censorial determinava tudo. Para além dos editores, os jornalistas foram se amoldando àquela situação, entronizando as proibições, sem que necessariamente elas precisassem ser tão expressas.
Já estava mais ou menos posto que não era possível falar sobre dom Hélder Câmara, por exemplo, e sobre ele não se falava, e ponto final. A ditadura não queria que se falasse de dom Hélder de modo nenhum, nem que fosse contra. Nelson Rodrigues, amigo de Médici, conseguiu uma autorização especial para continuar a falar do bispo. São as estranhezas da ditadura e daquela estranha relação.

Principalmente entre 1972 e 1975, as principais redações recebiam telefonemas proibitivos, além dos bilhetinhos da Polícia Federal, e isso bastava para que a ditadura fosse obedecida, para que os interesses se tornassem comuns, se comuns não fossem.

A partir dos bilhetinhos e dos telefonemas foi se afirmando um manual não escrito de procedimentos, às vezes ampliado pelas próprias redações, tal o conformismo. Essa rotina, dos telefonemas e dos bilhetinhos, persistiu até 1978, e o livro de Paolo Marconi constitui um documento raro quanto a isso, A Censura Política na Imprensa Brasileira – 1968-1978.

A cumplicidade da mídia hegemônica no curso da ditadura foi escandalosa e, sem incorrer em qualquer tentação panfletária, verdadeiramente criminosa, especialmente quando serviu de suporte para legalizar as mortes cometidas pelos centros de repressão abertos ou clandestinos. Aqui, não há como tergiversar. A ditadura elaborava a farsa de que um preso político barbaramente torturado e morto tinha sido ferido por seus companheiros quando fora cobrir um ponto, entregava o release à imprensa, e tudo corria no melhor dos mundos. E certamente nossa mídia achava que podia lavar as mãos.

É provável que em alguns jornais, não sei se nas redes de televisão, houvesse alguma repugnância por esse procedimento, malgrado o adotassem porque era quase a regra, auto-assumida. Em outros, como no jornal Folha da Tarde, na sua segunda fase, após o AI-5, os assassinatos eram recebidos com alegria, e mais do que isso, a publicação contava com muitos tiras na redação – era, como se dizia à época, o jornal de maior tiragem, exatamente por conta do número de policias na redação.

Alguns dos carros da Folha da Tarde foram queimados por organizações revolucionárias de esquerda, e isso mereceu editorial assinado por Octávio Frias de Oliveira em que afirmava que o Brasil estava muito bem e “a subversão, que se alimenta do ódio e cultiva a violência está sendo definitivamente erradicada, com o decidido apoio do povo e da imprensa” (publicado na Folha da Tarde e Folha de S.Paulo, 22/9/1971, conforme Beatriz Kushnir).

Não se deve buscar, no entanto, publicações isoladas para explicar o colaboracionismo – outro termo antigo, mas apropriado. Ele era relativamente generalizado, embora não fosse levado ao extremo da militância policial do grupo Folha, inimigo declarado da esquerda, parceiro declarado da ditadura.

No mesmo livro de Kushnir, há trechos de um depoimento de Jânio de Freitas, publicado pela Folha de S.Paulo de 15 de dezembro de 1998, em que ele, com sua coragem e honestidade de sempre, explica que se a imprensa manifestou aqui e ali sua contrariedade com aspectos do AI-5, mas não foi contra o seu sentido geral, e não seria possível, como diz, ser contra o AI-5 sem ser contra o regime. “E a imprensa, embora uma ou outra discordância eventual, mais do que aceitou o regime: foi uma arma essencial da ditadura.”

E aqui afirma o que se conhecia, mas que hoje talvez não seja devidamente enfatizado: o Jornal do Brasil foi “o grande propagandista das políticas do regime, das figuras marcantes do regime, dos êxitos verdadeiros ou falsos do regime.” Um dos grandes, seria melhor dizer, para não ser injusto com alguns outros, como O Globo, O Estado de S. Paulo e a Folha de S. Paulo, este já bastante lembrado.

Um dos sinais mais evidentes do colaboracionismo da imprensa com a ditadura foi o desenvolvimento de uma forte imprensa alternativa. Surgiu não apenas pela disposição dos jornalistas que a organizaram. Foram as condições políticas do período que animaram o seu surgimento – e foi uma imprensa multifacetada, com algumas publicações de natureza nacional, outras regionalizadas, com uma impressionante diversidade, que tratava das questões culturais às de gênero, incluía o homossexualismo e as mulheres, e, sobretudo, constitui-se em um jornalismo de combate à ditadura, que enfrenta, confronta todas as dificuldades do período.

O espaço estava aberto devido ao colaboracionismo da imprensa hegemônica. O espaço para outro tipo de jornalismo, que fosse mais fundo na análise, que não compactuasse com o regime estava aberto, como visto. E a maior evidência disso é quando a ditadura cede, quando Figueiredo assume e a distensão se acelera, e a mídia hegemônica assume alguns dos temas da imprensa alternativa. Esta, então, definha irremediavelmente, ali pelo fim da década de 1970, início dos anos 1980. Havia cumprido o seu papel. Um deles, mesmo que não o quisesse, denunciar a omissão dos grandes meios de comunicação.

O país deve muito a essa imprensa – os jornalistas que se envolveram nas muitas publicações do período conseguiram não só engrandecer a profissão, como revelar coragem política. É inegável que muitas daquelas publicações tinham a ver com a militância política propriamente dita, o que só as valoriza, não as diminuem. Afinal, o jornalismo brasileiro dos dias de hoje e o daquele período não tinham a ver com um tipo de militância política?

Na análise desse período, cabem algumas palavras sobre o grupo chefiado à época por Roberto Marinho. A Globo se constitui em rede, ali pelo final de 1969, graças aos pesados e calculados investimentos da ditadura nas telecomunicações, e por isso, se antes o grupo já fora fundamental na operação que resultou no golpe de 1964, agora ainda mais, com o regime em desenvolvimento.

Podendo chegar a todo o país, tornando-se um império poderoso, o Jornal Nacional acabou por se tornar o diário oficial do regime, e tanto quanto o restante da imprensa, também tentava sempre legalizar os crimes da ditadura, dando mortes por tortura como atropelamentos e simulações assemelhadas.

O arauto-mor da ditadura, inegavelmente, foram as organizações Globo, particularmente a Rede Globo. Pretender que a emissora estivesse solitária na tarefa, no entanto, seria uma injustiça que não deve ser cometida contra o restante de nossa mídia hegemônica, tão firme quanto ela na defesa da ditadura. O que cabe acentuar, no entanto, é que as Organizações Globo passaram a ter um papel acentuado na vida política do país, mesmo e, quem sabe, principalmente depois que a ditadura foi derrotada, mas isso é conversa para outro momento.

Censura prévia, bem, claro que houve, nunca na dimensão que pretendeu a própria imprensa hegemônica a posteriori. Hélio Fernandes enfrentou dez anos de censura prévia no seu Tribuna de Imprensa, e normalmente não é o mais lembrado. De agosto de 1972 a janeiro de 1975, as vítimas foram O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde. Justo o grupo da família Mesquita, que se orgulhava de ter participado ativamente das articulações que resultaram no golpe de 1964. Veja foi censurada de 1974 a 1976. Os alternativos sofreram bastante também: O Pasquim ficou sob censura prévia de novembro de 1970 a março de 1975; O São Paulo, de junho de 1973 a junho de 1978; o jornal Opinião, de janeiro de 1973 a abril de 1977; e o Movimento, de abril de 1975 a junho de 1978.  

Há um dado curioso, embora compreensível. A censura se acentua, como censura prévia, sob Geisel. Exatamente o ditador da distensão, o que parece um paradoxo, ou uma contradição em termos. Afinal, a distensão não devia afrouxar a censura? Em tese, somente como um raciocínio teórico. Vamos refletir rapidamente sobre isso.

Primeiro, Geisel atendia aos reclamos de uma burguesia já cansada da espada; segundo, não ia parar de reprimir a esquerda; terceiro, precisava do silêncio ou compreensão da imprensa quanto a isso; quarto, tinha de derrotar a linha dura militar. Esta não aceitava a liderança de Geisel, pretendia aprofundar a repressão e solapar a abertura, mesmo aquela, tão limitada.

Diante disso, o que fazer com a mídia, tanto a hegemônica quanto a alternativa? Decide dar sinais duros, levando a censura para dentro de alguns dos meios, como já falamos. Era uma espécie de efeito-demonstração, que dissuadia tanto aqueles meios diretamente atingidos, como os demais a quaisquer rompantes. Mas, não apenas isso.

Estabelecida a censura prévia, a ditadura, então, trabalha no sentido de provocar a demissão de alguns jornalistas que ocupavam cargos de direção e que exerciam grande liderança nas redações – Mino Carta, da Veja, Cláudio Abramo, da Folha, Alberto Dines do Jornal do Brasil –, para lembrar alguns, e garantir que ascendessem figuras dispostas a conversar com a ditadura para que a transição fosse ordeira, relativamente sob controle.

Claro que isso não foi decorrente apenas de uma decisão ditatorial, mas da própria compreensão, da aquiescência dos patrões, que já se sentiam incomodados com aquelas lideranças jornalísticas que não aceitavam uma linha de tanta subordinação e que não queriam fechar os olhos ao arbítrio e às violações dos direitos humanos.

Golbery, claro, foi o grande articulador disso tudo, e o fez com competência. A ditadura estabeleceu uma linha direta com os novos editores, e estes contribuíram muito para que a estratégia da distensão lenta, gradual e segura fosse bem-sucedida. Eram jornalistas de espinha mais flexível, capazes de entender as razões da ditadura. 

Se olharmos bem, a ditadura retira a censura prévia primeiramente dos grandes veículos, como O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, em 1975; Veja, em 1976. O Pasquim teve a censura prévia suspensa em 1975, com a observação, no entanto, que estava na condição de censurado desde 1970. O São Paulo só viu levantada a presença dos censores na redação em 1978, Opinião só em 1977, e Movimento em 1978.

Nada disso se deu de forma linear, e houve atropelos. A crise do modelo complacente-engajado ganhou mais intensidade com as mortes de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho – entre 1975 e 1976. A derrota da linha dura entrara na ordem do dia, e só ocorre em 1977, com a demissão do general Silvio Frota.

A partir de então, a mídia hegemônica passa a se sentir mais livre. Escrevi sobre isso em meu livro Jornalismo de Campanha e a Constituição de 1988. Era evidente que, nessas novas condições, especialmente quando o general João Baptista Figueiredo assume, a imprensa não podia continuar na mesma toada. Afinal, a ditadura estava saindo de cena, e sairia definitivamente em 1985. Havia uma clara crise de hegemonia no país. A mídia, por imposição dessa nova conjuntura, havia de acompanhar o ritmo, salvo a Rede Globo, que tinha de ser muito mais obediente, e era até mais real do que o rei.

Tudo era mudança na velha mídia, nessa conjuntura. Lembro que o jornal Folha de S. Paulo, que fora um aliado fiel da ditadura, a partir daí copia temas e fórmulas da imprensa alternativa. Ao mesmo tempo, firmava-se um padrão de empresas jornalísticas com ênfase exclusiva no mercado.

Como o clima político mudara, os temas das denúncias de arbitrariedades, das torturas, da legislação autoritária, dos escândalos de corrupção passam a figurar na mídia hegemônica. Como dizia no livro Jornalismo de Campanha e a Constituição de 1988, a velha mídia, nessa fase, particularmente os meios impressos, cumpre o papel de ser uma espécie de aríete do que à época se denominava abertura, a anunciadora de uma nova hegemonia que se gesta no interior do governo Figueiredo. A seu modo, a mídia torna-se avalista da transição conservadora que se processa no país.

Não custa lembrar que, sob Figueiredo, jornais como O Pasquim e o O Repórter ainda são apreendidos, jornalistas do Coojornal e do Hora do Povo são processados e presos, a linha dura promove atentados contra sedes de jornais alternativos e contra banca de revistas, uma bomba explode na sede da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro e mata a secretária Lydia Monteiro da Silva, ocorre a tentativa de atentado no Riocentro, no Rio de Janeiro. Não é pouca coisa. Eram os estertores dos setores mais radicalizados da ditadura, e a velha mídia, nesse momento, cumpre um papel decisivo no sentido de denunciá-los. Cumpria o acordo de facilitar a derrota da linha dura, assegurar a transição conservadora.

Não é que a imprensa descarte rupturas. Ao longo dos textos dessa série, tenho demonstrado que não. Ela pode apostar em rupturas, em golpes – no caso, sempre de direita que ela, para fazer justiça, nunca admite variações quanto ao lado em que se encontra do espectro político. Quando seus interesses estão em perigo, e quando em perigo encontra-se o bloco histórico do qual ela faz parte, ou quando está no poder uma composição de forças da qual discorde, a velha mídia pode apostar no confronto, no golpe e na ruptura, para além de quaisquer institucionalidades. E o golpe de 1964, como a tentativa de 1954, é exemplar nesse sentido.

Na fase final da ditadura, quando se desenhava outra composição de forças, a mídia hegemônica aposta na mesma política que vinha desenvolvendo: é possível fazer a transição sem grandes rupturas, e Tancredo Neves correspondia ao perfil desejado para essa tarefa. Não importa se, de fato, nas condições dadas, fosse ele de fato o personagem apropriado para aquela conjuntura.

O que se está dizendo é que a mídia seguia rigorosamente o script montado até agora: contribuir para que o país saísse da ditadura sem que isso implicasse quaisquer mudanças mais significativas, ao menos nas estruturas mais profundas da sociedade. Não será pouco a conquista da democracia, débil que fosse nos primeiros anos após o fim do regime militar, mas essa é outra história. Em 1985, terminava um ciclo da imprensa brasileira, um ciclo nada glorioso, em que predominou o padrão complacente-engajado, de cumplicidade e colaboracionismo com a ditadura.

Referências

ABRAMO, Cláudio. A Regra do Jogo: o Jornalismo e a Ética do Marceneiro. Prefácio: Mino Carta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
GASPARI, Élio. A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A Ditadura Encurralada, A Ditadura Derrotada. Série editada pela Companhia das Letras (São Paulo) entre 2002 e 2004.
JOSÉ, Emiliano. Jornalismo de Campanha e a Constituição de 1988. Salvador: Edufba; Assembleia Legislativa da Bahia, 2010.  
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários – Nos Tempos da Imprensa Alternativa. São Paulo: Editora Página Aberta, 1991.
KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda – Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
MARCONI, Paolo. A Censura Política na Imprensa Brasileira (1968-1978). São Paulo: Global Editora, 1980.


Emiliano José é professor-doutor (aposentado) em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia, jornalista, escritor e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate

Água mole em terra dura: uma pequena revolução no sertão pernambucano

Florisvaldo, assentado do MST, apresenta a plantação de uvas

Por Verena Glass (texto e fotos)
De Petrolina e Santa Maria da Boa Vista (PE)
Da Agência Repórter Brasil

Faz 40 anos que a chuva não faltou assim em Pernambuco. A seca de 2012, que levou 122 municípios a decretar estado de emergência, matou de fome cerca de 200 mil animais (outros 300 mil foram abatidos antes que a falta de chuva os matasse). Entre os mais de 1 milhão de sertanejos vitimados pela estiagem, os que vivem da roça perderam 100% das lavouras de milho e feijão; e 80% dos açudes e barragens do sertão viraram pó. É o que contabiliza o governo do Estado.

A paisagem mais comum da região é como esta, seca

Os lotes da agrovila de São José do vale são cheios de verde
 Localizada às margens do rio São Francisco, a região de Petrolina, segunda maior cidade do Estado, também é sufocante nesta época do ano. Quem deixa o município pela BR-122 rumo a Lagoa Grande mergulha em uma paisagem cinza de Caatinga ressequida. O ar tremula oleoso de quentura, e à passagem do carro, urubus preguiçosos apenas saltitam de esguelha ou levantam um vôo curto para rapidamente voltar à carcaça da vaca morta na beira da estrada. Vez por outra, cabritos mais desatentos, que vagam feito retirantes pelos acostamentos, botam susto no motorista.
Percorridos pouco mais de 140 quilômetros pela BR, pode-se quebrar à direita numa brecha de cerca sem sinalização, e seguir por uma estradinha de terra que desemboca em uma pequena agrovila. Chegou-se ao assentamento São José do Vale. Algumas curvas além, um verde desatado engole a Caatinga. Aqui, parreirais, campos de melancia, goiabeiras, mangueiras e pinha, que se revezam nos pequenos lotes, contam a história de um outro sertão.
 São José do Vale é um dos 32 assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) do lado pernambucano do Vale do São Francisco, no trecho entre Petrolina e Santa Maria da Boa Vista. Os cerca de 120 hectares do atual assentamento pertenciam à Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco), que os havia arrendado ao falido projeto Sanrisil para produção de goiaba e plantas medicinais. Em 1996, a área foi ocupada pelo MST, e um ano e dois despejos depois, no final de 1997 sua posse foi emitida para os sem terra. Com 36 famílias, São José está entre os 10 assentamentos do MST na região que se beneficiam de uma estrutura operante de irrigação.
 Do quase nada ao muito melhor
Nativo de Bodocó, Pernambuco, Francisco Regivaldo dos Santos deixou a terra seca dos pais em 1992 e se empregou como trabalhador em um projeto de produção de goiaba nas cercanias de Petrolina. O trabalho e o patrão não eram ruins, mas as histórias de uns e outros que conseguiram terra próprio na região mexeram com ele. Em 2000, resolveu raspar o tacho das economias e tentar a sorte em um dos lotes que vagou no assentamento de São José do Vale.
 Confortavelmente instalado à sombra de uma árvore no espaçoso quintal de sua casa, Francisco sorri quando lembra o passado. “Quando cheguei aqui não havia produção na terra. Tive que desmatar a caatinga por conta própria, e no começo passamos fome mesmo. Eu acordava todo dia às 4 horas da madrugada, saía sem comer, porque não tinha, e quando chegava em casa era só um cuscuz com café. Construímos nosso primeiro barraco debaixo da mangueira”.
 

Francisco e sua família juntos à plantação de pinha
Assim na aparência, pouco na vida de Francisco hoje lembra aquele começo difícil. Há quatro anos, a família terminou a construção da casa (grande até para padrões da cidade) na beira do rio. Ao lado, montou uma estrutura para receber amigos e visitantes nos finais de semana, com cozinha, churrasqueira e bar; e na garagem guarda sua caminhonete prateada.
 Da varanda da casa, separado apenas por uma ruazinha de terra, pode-se avistar o plantio de pinha e atemóia de Francisco, que ocupa 1,6 hectares. Ao lado, segue o meio hectare de manga, e pouco adiante se estendem os dois hectares de uva de mesa da família – tudo irrigado. Pelos seus cálculos, o assentado tira hoje cerca de R$ 3 mil por mês com a produção de frutas, mas já teve vez que a renda mensal chegou a R$ 10 mil. “Um ano em que tudo teve preço”, lembra. “Só posso dizer que nos últimos 12 anos a minha vida melhorou muito”, assegura rindo, só para reafirmar.
 Se a qualidade de vida melhorou, a demanda de trabalho continua a mesma. Ou melhor, aumentou. Tanto a pinha quanto a atemóia são culturas rentáveis, mas que precisam ser polinizadas manualmente, explica Francisco. Isso significa introduzir manualmente o pólen nas flores de cada planta para garantir a frutificação.  Já o manejo da uva – carro-chefe dos assentados de São Jose, e que rende duas colheitas anuais –, exige uma dedicação que pode inviabilizar áreas maiores.
Grosso modo, o custo inicial para a estruturação de um hectare de uva de mesa irrigada em São José do Vale é de cerca de R$ 50 mil, contando-se a aquisição dos mourões, dos arames e da estrutura de irrigação por gotejamento (bomba de água, dutos e mangueiras).
Comprar itens usados pode diminuir os gastos – paliativo adotado por vários assentados, muitos dos quais se estruturaram basicamente com verbas do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) –, mas o manejo no período de produção é invariavelmente trabalhoso e caro: depois da florada, é preciso uma primeira varredura do parreiral para ralear os cachos de forma a permitir uma produção uniforme e de qualidade. Uma segunda varredura é feita quando a uva está amadurecendo, e, com muito cuidado, examina-se cacho a cacho e retiram-se os frutos danificados, para que os demais não sejam contaminados e perdidos. Depois da colheita, segue-se a poda do parreiral, e uma espera de 60 dias para que as plantas reiniciem o ciclo produtivo.

Mulheres ganham até 80 reais por dia para ralear uvas
“Aqui todo mundo é apaixonado pela uva, mas nosso maior problema é achar e pagar a mão-de-obra necessária. Uma diária está saindo por volta de RS 27, e tem mulher ganhando até 80 reais por dia para ralear uva. É caro demais ter que contratar; nessa atividade não dá pra ter funcionário”, explica Francisco, que, no entanto, já paga cinco ajudantes.
 A capacidade do assentamento de ser praticamente autossuficiente no que tange a mão-de-obra – quando as próprias famílias não dão conta do trabalho, a ajuda vem dos vizinhos – lhe confere uma vantagem considerável sobre os grandes projetos de fruticultura irrigada da região, explica o coordenador regional de produção do MST, Edinaldo Ramalho Leite, o Neguinho. “Tem duas coisas que temos que levar em conta: o pequeno produtor tem que diversificar as culturas para garantir uma renda estável. E não pode exagerar na área de uva. Independente da variação do preço da produção, o pequeno se segura. Já os grandes estão quebrando”, afirma Neguinho.

Luis Fernando Verissimo pede punição aos convenientes com a tortura



Veríssimo menciona depoimento do ex-marido de Dilma à Comissão da Verdade, que “lembrou a participação de empresários na repressão” praticada durante a ditadura militar; “pode-se punir militares torturadores, mas o papel conivente da Oban e da Fiesp permanecerá esquecido no passado”

O escritor gaúcho Luis Fernando Veríssimo pede, em artigo publicado no jornal O Globo nesta quinta-feira, punição a quem foi conivente com a tortura praticada durante a ditadura militar. E não apenas nesse episódio, mas também no esquema montado por PC Farias para canalizar todos os negócios com o governo através de sua firma, o que acabou derrubando o ex-presidente Fernando Collor. Nos dois casos, o mesmo silêncio do empresariado. A analogia, diz Veríssimo, só é falha porque não se compara empresários que gozam vendo tortura e que querem apenas fazer bons negócios, se submetendo ao esquema de corrupção vigente.

Os coniventes

Por Luis Fernando Verissimo
O ex-deputado estadual e ex-marido da Dilma, Carlos Araújo, não é um ex-ativista político, pois recentemente voltou à militância partidária no PDT, apesar de limitado pela saúde. Quando militava na resistência à ditadura foi preso, junto com a Dilma, e os dois foram torturados.
luis fernando verissimo ditadura brasil
Luis Fernando Veríssimo: “Pode-se punir militares torturadores, mas o papel conivente da Oban e da Fiesp permanecerá esquecido no passado”
Depondo diante da Comissão Nacional da Verdade, esta semana, sobre sua experiência, Araújo lembrou a participação de empresários na repressão, muitas vezes assistindo à ou incentivando a tortura.
Que eu saiba, foi a primeira vez que um depoente tocou no assunto nebuloso da cumplicidade do empresariado, através da famigerada Operação Bandeirantes, em São Paulo, ou da iniciativa individual, no terrorismo de estado.

SAIBA MAIS: O envolvimento dos empresários com a tortura no Brasil
O assunto é nebuloso porque desapareceu no mesmo silêncio conveniente que se seguiu à queda do Collor e à revelação do esquema montado pelo P. C. Farias para canalizar todos os negócios com o governo através da sua firma, à qual alguns dos maiores empresários do país recorreram sem fazer muitas perguntas.
A analogia só é falha porque não há comparação entre o empresário que goza vendo tortura ou julga estar salvando a pátria com sua cumplicidade na repressão selvagem e o empresário que quer apenas fazer bons negócios e se submete ao esquema de corrupção vigente. Mas a impunidade é comparável: o Collor foi derrubado, o P. C. Farias foi assassinado, mas nunca se ficou sabendo o nome dos empresários que participaram do esquema. (fonte: Pragmatismo Politico)