Por: Eduardo Nunomura
No dia 25 de janeiro de 1984, eu tinha 15 anos, uma
vaga noção do que eram as Diretas-Já, mas a certeza de que devia estar na Praça
da Sé. Era uma data histórica demais para não ser uma entre as mais de 300 mil
pessoas presentes à “maior manifestação já realizada em São Paulo desde a
Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, segundo a Folha de S.Paulo. Em 13 de março de 2015, aqui estou eu de novo nas
ruas. Se são 100 mil, 41 mil ou 12 mil manifestantes, não importa. Esta é uma
história que não podia deixar de ser contada.
Vera Oliveira, agricultora do Vale do
Ribeira – Fotos: Eduardo Nunomura
São
14h20 e um grupo de 600 pessoas do vale do Ribeira caminha lentamente pela
avenida Paulista, na direção do Museu de Arte de São Paulo (Masp). A bananicultora Vera Lúcia de Oliveira, de 58 anos, é uma delas. Secretária de Política
para Mulheres da Federação da Agricultura Familiar, não escondia o discurso de
uma típica eleitora de Dilma
Rousseff e do PT. “Vim defender a
Petrobras, os programas sociais, a política de habitação popular e me opor a
usar o recurso deles para pagar o déficit fiscal”, diz.
Em Sete Barras (SP), no vale do
Ribeira, Vera Lúcia é uma líder atuante. É ela quem organiza os ônibus e os
trabalhadores que vão engrossar manifestações sindicais Brasil afora. Desta
vez, foram 12 ônibus. Das bananas que cultiva, ela obtém em torno de um salário
mínimo e meio (1.200 reais) por mês. É pouco, mas antes era pior. “Hoje, cada
prefeitura é obrigada a comprar 30% da agricultura familiar. Trabalhamos para
ampliar nosso mercado.”
Vera
Lúcia não tem tempo para descansar e ouvir alguns discursos de professores da
rede estadual paulista no Masp, que minutos antes haviam decretado greve a
partir de segunda-feira. Chega no meio de uma confusão entre manifestantes
(leia o relato aqui)
e logo se soma aos que estavam no ato em defesa da Petrobras e do governo
Dilma. Começa a chover. A cântaros. Blocos de anotações não combinam com água.
Na parte de trás de uma banca de jornal, um providencial abrigo me presenteia
com dois novos personagens. Marcos e Sergio discutem, mas civilizadamente.
“Não
estou subestimando, mas é uma coisa que ainda está longe de acontecer”,
afirma Marcos
Kennedy, de 28 anos. Ele se refere ao
movimento pró-impeachment da presidente. Sérgio Paulo da Silva, de 43, retruca: “A luta pela defesa da democracia
é muito mais urgente, não estou desprezando as suas reivindicações”. Marcos e
Sérgio são colegas de universidade, da Uninove, onde se formaram professores.
Reencontraram-se na rua. Ambos concordam que a Central Única dos Trabalhadores
(CUT) pegou uma “carona” ao marcar um ato no mesmo dia da assembleia dos
professores. Decidida a greve, discordavam se deviam seguir com um ou outro
grupo.
Os professores Sérgio Paulo da Silva
e Marcos Kennedy divergem sobre os objetivos do ato
Marcos relata as dificuldades enfrentadas pelos professores da rede estadual paulista. Não há material de limpeza, não há mesas de professores, o mato do “jardim” da escola. E o clima é de tensão, depois da demissão, pelo governo tucano deGeraldo Alckmim, de mais de 20 mil profissionais com contrato temporário. Ainda assim, Sérgio afirma que “lutas satélites” dos trabalhadores, neste momento, podem fazer o país retroceder para uma época em que essa discussão nem fazia sentido. “Só fui fazer faculdade aos 30 e poucos anos, com o Prouni. Não quero voltar ao tempo em que havia uma divisão profunda entre pobres e ricos”, diz o ex-operador de máquinas que hoje leciona história.
A tempestade
não dá tréguas e o jeito é negociar um desconto para comprar um guarda-chuva
para acompanhar a marcha (sim, uma marcha não fica parada). A rede de #JornalistasLivres dispara pelo Whatsapp que o site do
jornal Valor
Econômico informa que manifestantes
recebem R$ 35 para estar naquele ato. Mas como encontrar naquela multidão o desempregado Edmilson Barbosa, o único personagem citado na reportagem? Nem vou
perder meu tempo.
Em vez disso, o repórter descobre uma
jovem universitária contando os números de manifestantes na avenida Paulista,
entre rua Peixoto Gomide e alameda Ministro Rocha Azevedo, para o Datafolha.
Planilha na mão, ela marca com um traço ou um círculo o número de pessoas. Por
uma jornada das 9h até as 21h, recebe R$ 95. Ainda são 16h, faltando cinco para
acabar o trabalho. “Não tá valendo, não.” O instituto cravou 41 mil pessoas no
ato – menos que os 100 mil, segundo a CUT, e mais que os 12 mil da Polícia
Militar.
José Augusto Camargo e Jamil Murad
(PCdoB)
Na
descida da rua da Consolação, o presidente do Sindicato de Jornalistas de São
Paulo, José
Augusto Camargo, se depara com Jamil Murad, presidente do PCdoB da capital paulista. “Eles
conseguiram que a gente se unificasse de novo”, alegra-se o político. “É um ato
conjunto e plural, de muita diversidade, e é só o primeiro.” O sindicalista
concorda. “É difícil segurar agora. Isto aqui é fruto de movimentos
organizados, enquanto quem está por trás do movimento do dia 15 são grupos
minoritários. Quer uma manchete? Escreve aí: ‘A esquerda sai de alma lavada’.”
Minutos
depois, a chuva dá uma trégua. A multidão agita as bandeiras e os comerciantes
apenas assistem a tudo. Muitos cerram as portas, em pleno expediente de
sexta-feira. Trabalhadores que queriam voltar para casa se desviam da massa.
“Pode chover/ pode molhar/ ninguém segura a resistência popular/ pode chover/
pode molhar/ e a Petrobras ninguém vai privatizar”, cantam os manifestantes. A
polícia filma e acompanha tudo de perto, mas não houve registro de confronto ou
depredação em nenhum dos 25 estados que se manifestaram, segundo admite William Bonner no Jornal Nacional da sexta-feira 13.
A
aposentada Natália
Rosa da Silva, de 59 anos, puxa o ex-vereador e
médico Jamil Murad para uma foto com ela, a filha e outras mulheres da Unegro.
Ex-auxiliar de enfermagem, Natalia conheceu Jamil quando ele atendia no
Hospital do Servidor, no fim dos anos 1980. Desde então vota nele. “Vim para contrapor
ao que a mídia fala. Aqui é um monte de gente que acredita na política”,
explica Natalia. “Eu sei o real sentido de quem está na luta para sobreviver.
Criei sozinha quatro filhos, e foi muito complicado. Hoje, consigo que minha
caçula faça uma faculdade.”
Andréa Nascimento,
de 40 anos, é uma das filhas de Natália, mas não a caçula. Secretária, ela
compara a sua vida com a de seu filho do meio. “Ele ganha R$ 1.000 e só tem 16
anos. Eu ganhava isso com 28 anos, e com esse salário paguei minha faculdade,
com muito custo. O Bruno também faz faculdade, de marketing, e entrou pelo
Prouni.” E por que participar do ato? “Há uma luta de classes, pobres e ricos
estão digladiando. Estou do lado da Dilma, defendendo o que é nosso.”
A sem-teto Polyana e sua filha Alicia
O
temporal reinicia impiedoso. São 18h e a rua da Consolação está tomada de
manifestantes. Poucos arredam pé da marcha. Nem mesmo Polyana Alves, de 26 anos, e sua filha Alícia, de 4. A pequena tem um guarda-chuva. A mãe, não.
O repórter lhe dá carona e conhece sua história. Alagoana, que veio a São Paulo
dois anos atrás, ela participa de uma ocupação de sem-teto da Frente de Luta
pela Moradia (FLM). Mora de forma precária na avenida São João. “Estou sem
emprego, e não consigo um porque não tenho com quem deixar minha filha”,
afirma. Polyana já trabalhou de empregada doméstica, mas com o que ganhava mal
podia pagar o aluguel. Participar deste ato é mais um dia de luta entre tantos
outros em que ela é levada pelos líderes dos sem-teto para protestar por
moradia.
Os
carros de som se encontram na praça da República. A chuva cessa e a multidão
começa a se dispersar. A tinta verde-e-amarela no rosto da universitária Gabrielle Perez, de 18 anos, foi praticamente lavada com a chuva.
Com exceção dos festivos militantes da União da Juventude Socialista (UJS), vi
poucos estudantes nesse ato, talvez por estarem dispersos. Bem diferente das
passeatas de 1992, onde éramos numerosos e barulhentos. Mas entendi
completamente quando Gabrielle, que cursa gestão empresarial na Fatec, explicou
porque queria parecer uma cara-pintada. “Eles estão dizendo que vão vir
domingo (15) como os rostos pintados e gritando ‘fora, Dilma’ como aconteceu
com o ‘fora, Collor’. Mas não há a menor relação, porque hoje é que deveriam
estar os cara-pintadas”, diz.
A universitária afirma que nada mudará
sem uma reforma política, mas isso passa pela conscientização de seus colegas.
“Éramos adolescentes na era Lula e a maioria de nós não tem uma percepção clara
dos avanços sociais dos últimos anos. É por isso que não há tantos jovens aqui
e outros tantos estejam contra a Dilma.”
Perto
das 19 horas, policiais militares fazem um paredão humano e empurram os
manifestantes para as calçadas. A ordem é deixar ruas e avenidas livres.
Educadoras aproveitam os últimos minutos para abrir a faixa com os dizeres
“verás que um filho teu não foge à luta – a história da luta democrática no
Brasil”. As pessoas querem tirar uma foto que sintetiza o dia que viveram. É
uma faixa batizada pela chuva, mas já carregada de história. No ano passado,
para marcar os 50 anos da ditadura militar, professores do Centro Educacional
Unificado (CEU) do Butantã fizeram uma exposição que abordava esse tema. Quando
souberam do ato em defesa da democracia, Anna Cecília Simões, Sabrina Teixeira e outras colegas a trouxeram para as ruas.
Grupo de educadoras da rede municipal
no Butantã exibem faixa-síntese do dia
“Queremos um Brasil dos direitos, dos cuidados, do interesse público, da participação popular, da diversidade, de menos desigualdades”, resume Anna Cecília, de 57 anos, supervisora da Diretoria Regional da Educação da Prefeitura de São Paulo. Nos anos 1980, já na redemocratização, a educadora ajudou na implementação dos Centros Integrados de Educação Pública, os Cieps concebidos por Darcy Ribeiro e mais lembrados como Brizolões, por causa do então governador do Rio de Janeiro Leonel Brizola. Depois, foi chamada por Marta Suplicy para criar os CEUs. “Temos instituições cada vez mais fortalecidas e tenho orgulho do que conquistamos até agora.”
Sabrina, de 35 anos, é gestora do CEU
Butantã e completa o pensamento da colega. “A nossa principal bandeira é o que
defendemos na nossa faixa, a luta democrática. Mas também defendemos uma
Constituinte para que a reforma política seja feita, porque do jeito que as
coisas estão as outras transformações não virão”, diz. “Queremos um Brasil de
qualidade para todos os nossos meninos e meninas. E isso significa nenhum a
menos.”
O
Brasil que não quer se dividir, nem deixar ninguém para trás, fez história
neste 13 de março de 2015. E esta foi a minha história.
* #JornalistasLivres em defesa da democracia: cobertura
colaborativa; textos e fotos podem ser reproduzidos, desde de que citada a
fonte e a autoria. Mais textos e fotos em facebook.com/jornalistaslivres.