Localizada às margens do rio São Francisco, a
região de Petrolina, segunda maior cidade do Estado, também é sufocante
nesta época do ano. Quem deixa o município pela BR-122 rumo a Lagoa Grande mergulha
em uma paisagem cinza de Caatinga ressequida. O ar tremula oleoso de
quentura, e à passagem do carro, urubus preguiçosos apenas saltitam de
esguelha ou levantam um vôo curto para rapidamente voltar à carcaça da
vaca morta na beira da estrada. Vez por outra, cabritos mais desatentos,
que vagam feito retirantes pelos acostamentos, botam susto no
motorista.
Percorridos pouco mais de 140 quilômetros pela BR,
pode-se quebrar à direita numa brecha de cerca sem sinalização, e
seguir por uma estradinha de terra que desemboca em uma pequena
agrovila. Chegou-se ao assentamento São José do Vale. Algumas curvas
além, um verde desatado engole a Caatinga. Aqui, parreirais, campos de
melancia, goiabeiras, mangueiras e pinha, que se revezam nos pequenos
lotes, contam a história de um outro sertão.
São José do Vale é um dos 32 assentamentos do
Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) do lado pernambucano
do Vale do São Francisco, no trecho entre Petrolina e Santa Maria da
Boa Vista. Os cerca de 120 hectares do atual assentamento pertenciam à
Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco),
que os havia arrendado ao falido projeto Sanrisil para produção de
goiaba e plantas medicinais. Em 1996, a área foi ocupada pelo MST, e um
ano e dois despejos depois, no final de 1997 sua posse foi emitida para
os sem terra. Com 36 famílias, São José está entre os 10 assentamentos
do MST na região que se beneficiam de uma estrutura operante de
irrigação.
Do quase nada ao muito melhor
Nativo de Bodocó, Pernambuco, Francisco Regivaldo
dos Santos deixou a terra seca dos pais em 1992 e se empregou como
trabalhador em um projeto de produção de goiaba nas cercanias de
Petrolina. O trabalho e o patrão não eram ruins, mas as histórias de uns
e outros que conseguiram terra próprio na região mexeram com ele. Em
2000, resolveu raspar o tacho das economias e tentar a sorte em um dos
lotes que vagou no assentamento de São José do Vale.
Confortavelmente instalado à sombra de uma árvore
no espaçoso quintal de sua casa, Francisco sorri quando lembra o
passado. “Quando cheguei aqui não havia produção na terra. Tive que
desmatar a caatinga por conta própria, e no começo passamos fome mesmo.
Eu acordava todo dia às 4 horas da madrugada, saía sem comer, porque
não tinha, e quando chegava em casa era só um cuscuz com café.
Construímos nosso primeiro barraco debaixo da mangueira”.
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Assim na aparência, pouco na vida de Francisco hoje
lembra aquele começo difícil. Há quatro anos, a família terminou a
construção da casa (grande até para padrões da cidade) na beira do rio.
Ao lado, montou uma estrutura para receber amigos e visitantes nos
finais de semana, com cozinha, churrasqueira e bar; e na garagem guarda
sua caminhonete prateada.
Da varanda da casa, separado apenas por uma
ruazinha de terra, pode-se avistar o plantio de pinha e atemóia de
Francisco, que ocupa 1,6 hectares. Ao lado, segue o meio hectare de
manga, e pouco adiante se estendem os dois hectares de uva de mesa da
família – tudo irrigado. Pelos seus cálculos, o assentado tira hoje
cerca de R$ 3 mil por mês com a produção de frutas, mas já teve vez que a
renda mensal chegou a R$ 10 mil. “Um ano em que tudo teve preço”,
lembra. “Só posso dizer que nos últimos 12 anos a minha vida melhorou
muito”, assegura rindo, só para reafirmar.
Se a qualidade de vida melhorou, a demanda de
trabalho continua a mesma. Ou melhor, aumentou. Tanto a pinha quanto a
atemóia são culturas rentáveis, mas que precisam ser polinizadas
manualmente, explica Francisco. Isso significa introduzir manualmente o
pólen nas flores de cada planta para garantir a frutificação. Já
o manejo da uva – carro-chefe dos assentados de São Jose, e que rende
duas colheitas anuais –, exige uma dedicação que pode inviabilizar
áreas maiores.
Grosso modo, o custo inicial para a estruturação
de um hectare de uva de mesa irrigada em São José do Vale é de cerca de
R$ 50 mil, contando-se a aquisição dos mourões, dos arames e da
estrutura de irrigação por gotejamento (bomba de água, dutos e
mangueiras).
Comprar itens usados pode diminuir os gastos –
paliativo adotado por vários assentados, muitos dos quais se
estruturaram basicamente com verbas do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar)
–, mas o manejo no período de produção é invariavelmente trabalhoso e
caro: depois da florada, é preciso uma primeira varredura do parreiral
para ralear os cachos de forma a permitir uma produção uniforme e de
qualidade. Uma segunda varredura é feita quando a uva está amadurecendo,
e, com muito cuidado, examina-se cacho a cacho e retiram-se os frutos
danificados, para que os demais não sejam contaminados e perdidos.
Depois da colheita, segue-se a poda do parreiral, e uma espera de 60
dias para que as plantas reiniciem o ciclo produtivo.
A capacidade do
assentamento de ser praticamente autossuficiente no que tange a
mão-de-obra – quando as próprias famílias não dão conta do trabalho, a
ajuda vem dos vizinhos – lhe confere uma vantagem considerável sobre os
grandes projetos de fruticultura irrigada da região, explica o
coordenador regional de produção do MST, Edinaldo Ramalho Leite, o
Neguinho. “Tem duas coisas que temos que levar em conta: o pequeno
produtor tem que diversificar as culturas para garantir uma renda
estável. E não pode exagerar na área de uva. Independente da variação
do preço da produção, o pequeno se segura. Já os grandes estão
quebrando”, afirma Neguinho.