A comprovação da convivência da imprensa
hegemônica com a ditadura desmonta a ideia de que toda a imprensa viveu
sob censura prévia e de que ela sempre lutou contra a censura. Quando a
grande mídia conta a história da ditadura, resultante do golpe militar
de 1964, que ela articulou conscientemente e do qual participou
decisivamente, muitas vezes exclui sua cota-parte na implantação daquele
regime de terror e morte.
Com a abertura veio a certeza de que a mídia hegemônica foi cumplíce da ditadura
Foto: Arquivo Agência Estado
(...) A tradição histórica antidemocrática de transições pelo
alto, que exclui a participação mais efetiva dos segmentos sociais
explorados, tão característica da sociedade nacional, mais uma vez se
impôs politicamente na passagem entre a ditadura e a democracia em 1985.
Tal modo de transição comporta nítidas limitações em termos da
democratização do país. É sempre bom lembrar que o sistema da grande
imprensa (televisões, jornais, revistas, rádios etc), forjado na e pela
ditadura cívico-
militar, permanece praticamente intocado até hoje, quase 25 anos depois do fim do regime democrático.(...).”
RUBIM, Antonio Albino Canelas, em prefácio
ao livro de JOSÉ, Emiliano. Jornalismo de Campanha e a Constituição de 1988. Salvador: Edufba, Assembleia Legislativa da Bahia, 2010.
A
mídia hegemônica brasileira, quando conta a história da ditadura,
resultante do golpe militar de 1964, que ela articulou conscientemente e
do qual participou decisivamente, o faz a seu modo, muitas vezes
excluindo sua cota-parte na implantação daquele regime de terror e
morte. É como se nada daquilo tivesse a ver com ela. O que é,
obviamente, uma mistificação. Em outro momento dessa série, revelei a
natureza golpista de sua intervenção naquele episódio, sua apaixonada
participação na derrubada de um governo legítimo, como o de João
Goulart. Ou como o de Getúlio Vargas. Preocupação com legitimidade ou
legalidade nunca foi o seu forte.
Neste texto, discuto como
se deu a convivência da imprensa hegemônica com a ditadura, de modo a
desmontar a ideia de que toda a imprensa viveu sob censura prévia e de
que ela sempre lutou contra a censura, e bravamente. Devagar com o
andor, que o santo é de barro. Não é necessário muito conhecimento sobre
o período de 1964 a 1985 para perceber que houve censura no Brasil.
Disse censura, e não censura prévia. A existência da ditadura fala por
si. Ninguém cria livremente sob um regime dessa natureza, ninguém
escreve livremente numa fase dessas. Estamos no território das
obviedades, necessárias, no entanto.
Antes ainda que se fale
propriamente da relação entre a mídia hegemônica e a ditadura,
aconselha-se a que situemos os diversos períodos da ditadura,
rapidamente que seja. Entre 1964 e 1968, costumo dizer que a ditadura
viveu um dilema hamletiano: ser uma ditadura pra valer, ou combinar
ditadura e legalidade. A Constituição de 1967 foi um esforço para
combinar legalidade com arbítrio, se é possível isso. Diante do início
das mobilizações populares, particularmente do movimento estudantil, a
ditadura resolve radicalizar, e acaba com seu dilema. Para não anistiar o
período, lembremos que a ditadura já havia matado 39 pessoas.
O
AI-5 evidencia que foi rompida qualquer dúvida: agora, era ditadura, sem
tirar nem pôr, tempo em que o filho chorava e a mãe não via. A partir
de 13 de dezembro de 1968, o tempo fechou. Tortura, mortes,
desaparecimentos, fim de qualquer legalidade. Período de Médici, tempo
de Murici, cada um cuide de si. Ditadura sem freios, se é possível
freios em ditaduras. Aqui, nessa fase, o maior número de assassinatos e
desaparecimentos.
Veio Geisel, em 1974, e a abertura lenta,
gradual e segura. Início do que poderíamos chamar transição pactuada, e
uma transição ainda marcada pela presença de prisões, torturas,
desaparecimentos, e quando o estrato militar travou uma dura luta
interna entre os que pretendiam, a médio prazo, passar da ditadura para
um regime legal, e os que pretendiam radicalizar na violência e manter a
ditadura.
Geisel venceu a parada, sem que, no entanto, parasse
com os assassinatos. “Não podemos deixar de matar”, dissera ele em
depoimento gravado, como revela o jornalista Élio Gaspari em um de seus
livros sobre o período. A transição pretendida não foi a frio – foi a
quente, regada a sangue, com muitas mortes, podendo-se lembrar o
Massacre da Lapa, em 1976, quando foram mortos alguns e torturados
outros tantos dirigentes do PC do B. Ou a repressão que se abateu sobre o
PCB, que exterminou dez de seus dirigentes, e que matou Vladimir
Herzog. E tantas outras prisões, de variadas organizações
revolucionárias.
Veio Figueiredo, em 1979, e com ele,
efetivamente, uma nova fase, quando a transição passou a caminhar mais
aceleradamente, com mais liberdades, com a anistia que, mesmo parcial,
inaugurou um novo momento no Brasil. Não há como desconhecer que a
transição foi impulsionada pela constituição e mobilização de uma
poderosa sociedade civil e, a partir do final da década de 1970, pela
emergência de um movimento sindical de novo tipo, particularmente na
região do ABC paulista, cresceu ainda mais. Lula surgia, com toda sua
carga política e simbólica, um fato novo na história do Brasil. A
ditadura não acabara, mas dava todos os sinais de que estava no fim.
A
campanha pelas eleições diretas foi a pá de cal no velho regime.
Constituiu-se na mais extraordinária movimentação de massas do país, e
não só com o envolvimento das camadas populares, mas, também, com a
participação de parcelas das classes dominantes, que já sentiam que a
espada perdera sua eficácia e se constituía num entrave ao
desenvolvimento de seus negócios.
No plano político, isso se
expressou claramente: todo o PMDB, incluindo seus governadores,
participou decisivamente da luta pelas Diretas e foi decisivo, como a
esquerda brasileira também o fez, com muito entusiasmo. Não cabe aqui o
detalhamento disso, por impróprio para os objetivos desse texto. Tomo
apenas o cuidado de dizer que havia muitos setores de esquerda no
interior do PMDB, para evitar simplificações e maniqueísmos.
A
campanha foi derrotada, as Diretas não passaram pelo Congresso, mas foi
determinante como sinalização definitiva para o fim da ditadura. Em
1985, Tancredo Neves é eleito indiretamente e, por ironia do destino,
morre. José Sarney assume a Presidência da República, inaugurando o que
hoje já podemos constatar como o maior período democrático de nossa
história.
Agora, então, podemos discutir a relação entre a
imprensa e a ditadura, e desmontar cenários idílicos, particularmente o
que coloca, de um lado, uma imprensa liberal e sacrossanta que se
alevantou contra o arbítrio militar e, de outro, militares e seus
censores cruéis, sempre presentes nas redações, determinando tudo o que
devia ou não devia ser editado.
Fosse essa a história, tão assim
mocinhos e bandidos, e a imprensa hegemônica brasileira restaria
absolvida de todas suas vacilações, incongruências, conivências,
cumplicidades, complacência e colaboracionismo diante da ditadura. A
história é bem outra. E vamos tentar contá-la.
Na primeira fase a
que me referi – entre 1964 e 1968 – persiste o apoio dos grandes
jornalões à ditadura, mesmo que aqui, acolá surgissem críticas. É
inegável, no entanto, a afirmação de uma imprensa com capacidade
crítica, que revelava autonomia e vitalidade. Podemos lembrar do Correio da Manhã, sobre o qual falamos mais demoradamente em artigo anterior; do jornal Zero Hora, de Porto Alegre; das revistas Fatos e Fotos, Veja e Realidade e, também, dos jornais Folha da Tarde e Última Hora, em São Paulo.
A
conjuntura de uma ditadura que preservava algumas legalidades favorecia
isso. Num juízo rigoroso, a imprensa hegemônica ainda não fora posta à
prova pra valer. Isso aconteceria no pós-1968, com a edição do Ato
Institucional nº 5 (AI-5). Aí, então, se tomaria conhecimento de quem
era quem, se saberia quem topava enfrentar a ditadura ou não. E pode-se
dizer, com tranquilidade, que a maioria não topou, deu o seu aval à
ditadura e, para ser justo, o fez conscientemente, não apenas pela
existência da censura. Tratou-se de uma reafirmação da posição
hegemônica da mídia que, afinal, havia contribuído decisivamente, como
já dito, para o golpe de 1964.
Do AI-5 em diante, e até o final
dos anos 1970, predomina um padrão que Bernardo Kucinski denomina
complacente, e que eu preferiria chamar de complacente-engajado, no
sentido de que a mídia hegemônica, na esmagadora maioria dos casos,
estava engajada no projeto da ditadura, fez uma opção política por ele.
Nessa fase, os dois atores coabitavam com tranquilidade. A mídia não
precisava de censores em suas redações, bastava um piscar de olhos dos
generais, um simples bilhetinho, como era comum, às vezes de um
funcionário subalterno, e ela se dispunha a pressurosamente obedecer.
Não imaginem que exagero. Há uma vasta bibliografia a respeito, parte da
qual está ao final desse texto.
Faço o alerta de Beatriz Kushnir em seu notável livro Cães de Guarda – Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988:
não se queira que os jornalistas propriamente ditos estivessem a favor
da ditadura ou, ao menos, que a maioria deles estivesse. O sistema, para
recorrer a um palavrão antigo, os aprisionava. Dito de outra forma, os
patrões, baseados em editores fiéis, exigiam aquela linha editorial, da
qual não era possível fugir, ou era muito difícil fazê-lo. Quando
podiam, os mais conscientes tentavam encontrar frestas por onde noticiar
o que a boa consciência mandava.
O que predominou, ao contrário
do que a interpretação dada hoje pretende, no entanto, não foi
propriamente a censura, mas a autocensura. Diria que foi sendo
construída uma rotina produtiva que já a incluía. Uma espécie de
alter-ego censorial determinava tudo. Para além dos editores, os
jornalistas foram se amoldando àquela situação, entronizando as
proibições, sem que necessariamente elas precisassem ser tão expressas.
Já estava mais ou menos posto que não era possível falar sobre dom
Hélder Câmara, por exemplo, e sobre ele não se falava, e ponto final. A
ditadura não queria que se falasse de dom Hélder de modo nenhum, nem que
fosse contra. Nelson Rodrigues, amigo de Médici, conseguiu uma
autorização especial para continuar a falar do bispo. São as estranhezas
da ditadura e daquela estranha relação.
Principalmente entre
1972 e 1975, as principais redações recebiam telefonemas proibitivos,
além dos bilhetinhos da Polícia Federal, e isso bastava para que a
ditadura fosse obedecida, para que os interesses se tornassem comuns, se
comuns não fossem.
A partir dos bilhetinhos e dos telefonemas
foi se afirmando um manual não escrito de procedimentos, às vezes
ampliado pelas próprias redações, tal o conformismo. Essa rotina, dos
telefonemas e dos bilhetinhos, persistiu até 1978, e o livro de Paolo
Marconi constitui um documento raro quanto a isso, A Censura Política na Imprensa Brasileira – 1968-1978.
A
cumplicidade da mídia hegemônica no curso da ditadura foi escandalosa
e, sem incorrer em qualquer tentação panfletária, verdadeiramente
criminosa, especialmente quando serviu de suporte para legalizar as
mortes cometidas pelos centros de repressão abertos ou clandestinos.
Aqui, não há como tergiversar. A ditadura elaborava a farsa de que um
preso político barbaramente torturado e morto tinha sido ferido por seus
companheiros quando fora cobrir um ponto, entregava o release à
imprensa, e tudo corria no melhor dos mundos. E certamente nossa mídia
achava que podia lavar as mãos.
É provável que em alguns jornais,
não sei se nas redes de televisão, houvesse alguma repugnância por esse
procedimento, malgrado o adotassem porque era quase a regra,
auto-assumida. Em outros, como no jornal Folha da Tarde, na sua
segunda fase, após o AI-5, os assassinatos eram recebidos com alegria, e
mais do que isso, a publicação contava com muitos tiras na redação –
era, como se dizia à época, o jornal de maior tiragem, exatamente por
conta do número de policias na redação.
Alguns dos carros da Folha da Tarde
foram queimados por organizações revolucionárias de esquerda, e isso
mereceu editorial assinado por Octávio Frias de Oliveira em que afirmava
que o Brasil estava muito bem e “a subversão, que se alimenta do ódio e
cultiva a violência está sendo definitivamente erradicada, com o
decidido apoio do povo e da imprensa” (publicado na Folha da Tarde e Folha de S.Paulo, 22/9/1971, conforme Beatriz Kushnir).
Não
se deve buscar, no entanto, publicações isoladas para explicar o
colaboracionismo – outro termo antigo, mas apropriado. Ele era
relativamente generalizado, embora não fosse levado ao extremo da
militância policial do grupo Folha, inimigo declarado da esquerda, parceiro declarado da ditadura.
No mesmo livro de Kushnir, há trechos de um depoimento de Jânio de Freitas, publicado pela Folha de S.Paulo
de 15 de dezembro de 1998, em que ele, com sua coragem e honestidade de
sempre, explica que se a imprensa manifestou aqui e ali sua
contrariedade com aspectos do AI-5, mas não foi contra o seu sentido
geral, e não seria possível, como diz, ser contra o AI-5 sem ser contra o
regime. “E a imprensa, embora uma ou outra discordância eventual, mais
do que aceitou o regime: foi uma arma essencial da ditadura.”
E aqui afirma o que se conhecia, mas que hoje talvez não seja devidamente enfatizado: o Jornal do Brasil
foi “o grande propagandista das políticas do regime, das figuras
marcantes do regime, dos êxitos verdadeiros ou falsos do regime.” Um dos
grandes, seria melhor dizer, para não ser injusto com alguns outros,
como O Globo, O Estado de S. Paulo e a Folha de S. Paulo, este já bastante lembrado.
Um
dos sinais mais evidentes do colaboracionismo da imprensa com a
ditadura foi o desenvolvimento de uma forte imprensa alternativa. Surgiu
não apenas pela disposição dos jornalistas que a organizaram. Foram as
condições políticas do período que animaram o seu surgimento – e foi uma
imprensa multifacetada, com algumas publicações de natureza nacional,
outras regionalizadas, com uma impressionante diversidade, que tratava
das questões culturais às de gênero, incluía o homossexualismo e as
mulheres, e, sobretudo, constitui-se em um jornalismo de combate à
ditadura, que enfrenta, confronta todas as dificuldades do período.
O
espaço estava aberto devido ao colaboracionismo da imprensa hegemônica.
O espaço para outro tipo de jornalismo, que fosse mais fundo na
análise, que não compactuasse com o regime estava aberto, como visto. E a
maior evidência disso é quando a ditadura cede, quando Figueiredo
assume e a distensão se acelera, e a mídia hegemônica assume alguns dos
temas da imprensa alternativa. Esta, então, definha irremediavelmente,
ali pelo fim da década de 1970, início dos anos 1980. Havia cumprido o
seu papel. Um deles, mesmo que não o quisesse, denunciar a omissão dos
grandes meios de comunicação.
O país deve muito a essa imprensa –
os jornalistas que se envolveram nas muitas publicações do período
conseguiram não só engrandecer a profissão, como revelar coragem
política. É inegável que muitas daquelas publicações tinham a ver com a
militância política propriamente dita, o que só as valoriza, não as
diminuem. Afinal, o jornalismo brasileiro dos dias de hoje e o daquele
período não tinham a ver com um tipo de militância política?
Na análise desse período, cabem algumas palavras sobre o grupo chefiado à época por Roberto Marinho. A Globo
se constitui em rede, ali pelo final de 1969, graças aos pesados e
calculados investimentos da ditadura nas telecomunicações, e por isso,
se antes o grupo já fora fundamental na operação que resultou no golpe
de 1964, agora ainda mais, com o regime em desenvolvimento.
Podendo chegar a todo o país, tornando-se um império poderoso, o Jornal Nacional
acabou por se tornar o diário oficial do regime, e tanto quanto o
restante da imprensa, também tentava sempre legalizar os crimes da
ditadura, dando mortes por tortura como atropelamentos e simulações
assemelhadas.
O arauto-mor da ditadura, inegavelmente, foram as
organizações Globo, particularmente a Rede Globo. Pretender que a
emissora estivesse solitária na tarefa, no entanto, seria uma injustiça
que não deve ser cometida contra o restante de nossa mídia hegemônica,
tão firme quanto ela na defesa da ditadura. O que cabe acentuar, no
entanto, é que as Organizações Globo passaram a ter um papel acentuado
na vida política do país, mesmo e, quem sabe, principalmente depois que a
ditadura foi derrotada, mas isso é conversa para outro momento.
Censura
prévia, bem, claro que houve, nunca na dimensão que pretendeu a própria
imprensa hegemônica a posteriori. Hélio Fernandes enfrentou dez anos de
censura prévia no seu Tribuna de Imprensa, e normalmente não é o mais lembrado. De agosto de 1972 a janeiro de 1975, as vítimas foram O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde.
Justo o grupo da família Mesquita, que se orgulhava de ter participado
ativamente das articulações que resultaram no golpe de 1964. Veja foi censurada de 1974 a 1976. Os alternativos sofreram bastante também: O Pasquim ficou sob censura prévia de novembro de 1970 a março de 1975; O São Paulo, de junho de 1973 a junho de 1978; o jornal Opinião, de janeiro de 1973 a abril de 1977; e o Movimento, de abril de 1975 a junho de 1978.
Há
um dado curioso, embora compreensível. A censura se acentua, como
censura prévia, sob Geisel. Exatamente o ditador da distensão, o que
parece um paradoxo, ou uma contradição em termos. Afinal, a distensão
não devia afrouxar a censura? Em tese, somente como um raciocínio
teórico. Vamos refletir rapidamente sobre isso.
Primeiro, Geisel
atendia aos reclamos de uma burguesia já cansada da espada; segundo, não
ia parar de reprimir a esquerda; terceiro, precisava do silêncio ou
compreensão da imprensa quanto a isso; quarto, tinha de derrotar a linha
dura militar. Esta não aceitava a liderança de Geisel, pretendia
aprofundar a repressão e solapar a abertura, mesmo aquela, tão limitada.
Diante
disso, o que fazer com a mídia, tanto a hegemônica quanto a
alternativa? Decide dar sinais duros, levando a censura para dentro de
alguns dos meios, como já falamos. Era uma espécie de
efeito-demonstração, que dissuadia tanto aqueles meios diretamente
atingidos, como os demais a quaisquer rompantes. Mas, não apenas isso.
Estabelecida
a censura prévia, a ditadura, então, trabalha no sentido de provocar a
demissão de alguns jornalistas que ocupavam cargos de direção e que
exerciam grande liderança nas redações – Mino Carta, da Veja, Cláudio Abramo, da Folha, Alberto Dines do Jornal do Brasil
–, para lembrar alguns, e garantir que ascendessem figuras dispostas a
conversar com a ditadura para que a transição fosse ordeira,
relativamente sob controle.
Claro que isso não foi decorrente
apenas de uma decisão ditatorial, mas da própria compreensão, da
aquiescência dos patrões, que já se sentiam incomodados com aquelas
lideranças jornalísticas que não aceitavam uma linha de tanta
subordinação e que não queriam fechar os olhos ao arbítrio e às
violações dos direitos humanos.
Golbery, claro, foi o grande
articulador disso tudo, e o fez com competência. A ditadura estabeleceu
uma linha direta com os novos editores, e estes contribuíram muito para
que a estratégia da distensão lenta, gradual e segura fosse
bem-sucedida. Eram jornalistas de espinha mais flexível, capazes de
entender as razões da ditadura.
Se olharmos bem, a ditadura retira a censura prévia primeiramente dos grandes veículos, como O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, em 1975; Veja, em 1976. O Pasquim teve a censura prévia suspensa em 1975, com a observação, no entanto, que estava na condição de censurado desde 1970. O São Paulo só viu levantada a presença dos censores na redação em 1978, Opinião só em 1977, e Movimento em 1978.
Nada
disso se deu de forma linear, e houve atropelos. A crise do modelo
complacente-engajado ganhou mais intensidade com as mortes de Vladimir
Herzog e Manoel Fiel Filho – entre 1975 e 1976. A derrota da linha dura
entrara na ordem do dia, e só ocorre em 1977, com a demissão do general
Silvio Frota.
A partir de então, a mídia hegemônica passa a se sentir mais livre. Escrevi sobre isso em meu livro Jornalismo de Campanha e a Constituição de 1988.
Era evidente que, nessas novas condições, especialmente quando o
general João Baptista Figueiredo assume, a imprensa não podia continuar
na mesma toada. Afinal, a ditadura estava saindo de cena, e sairia
definitivamente em 1985. Havia uma clara crise de hegemonia no país. A
mídia, por imposição dessa nova conjuntura, havia de acompanhar o ritmo,
salvo a Rede Globo, que tinha de ser muito mais obediente, e era até mais real do que o rei.
Tudo era mudança na velha mídia, nessa conjuntura. Lembro que o jornal Folha de S. Paulo,
que fora um aliado fiel da ditadura, a partir daí copia temas e
fórmulas da imprensa alternativa. Ao mesmo tempo, firmava-se um padrão
de empresas jornalísticas com ênfase exclusiva no mercado.
Como o
clima político mudara, os temas das denúncias de arbitrariedades, das
torturas, da legislação autoritária, dos escândalos de corrupção passam a
figurar na mídia hegemônica. Como dizia no livro Jornalismo de Campanha e a Constituição de 1988,
a velha mídia, nessa fase, particularmente os meios impressos, cumpre o
papel de ser uma espécie de aríete do que à época se denominava
abertura, a anunciadora de uma nova hegemonia que se gesta no interior
do governo Figueiredo. A seu modo, a mídia torna-se avalista da
transição conservadora que se processa no país.
Não custa lembrar que, sob Figueiredo, jornais como O Pasquim e o O Repórter ainda são apreendidos, jornalistas do Coojornal e do Hora do Povo
são processados e presos, a linha dura promove atentados contra sedes
de jornais alternativos e contra banca de revistas, uma bomba explode na
sede da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro e mata a
secretária Lydia Monteiro da Silva, ocorre a tentativa de atentado no
Riocentro, no Rio de Janeiro. Não é pouca coisa. Eram os estertores dos
setores mais radicalizados da ditadura, e a velha mídia, nesse momento,
cumpre um papel decisivo no sentido de denunciá-los. Cumpria o acordo de
facilitar a derrota da linha dura, assegurar a transição conservadora.
Não
é que a imprensa descarte rupturas. Ao longo dos textos dessa série,
tenho demonstrado que não. Ela pode apostar em rupturas, em golpes – no
caso, sempre de direita que ela, para fazer justiça, nunca admite
variações quanto ao lado em que se encontra do espectro político. Quando
seus interesses estão em perigo, e quando em perigo encontra-se o bloco
histórico do qual ela faz parte, ou quando está no poder uma composição
de forças da qual discorde, a velha mídia pode apostar no confronto, no
golpe e na ruptura, para além de quaisquer institucionalidades. E o
golpe de 1964, como a tentativa de 1954, é exemplar nesse sentido.
Na
fase final da ditadura, quando se desenhava outra composição de forças,
a mídia hegemônica aposta na mesma política que vinha desenvolvendo: é
possível fazer a transição sem grandes rupturas, e Tancredo Neves
correspondia ao perfil desejado para essa tarefa. Não importa se, de
fato, nas condições dadas, fosse ele de fato o personagem apropriado
para aquela conjuntura.
O que se está dizendo é que a mídia seguia rigorosamente o script
montado até agora: contribuir para que o país saísse da ditadura sem
que isso implicasse quaisquer mudanças mais significativas, ao menos nas
estruturas mais profundas da sociedade. Não será pouco a conquista da
democracia, débil que fosse nos primeiros anos após o fim do regime
militar, mas essa é outra história. Em 1985, terminava um ciclo da
imprensa brasileira, um ciclo nada glorioso, em que predominou o padrão
complacente-engajado, de cumplicidade e colaboracionismo com a ditadura.
Referências
ABRAMO, Cláudio. A Regra do Jogo: o Jornalismo e a Ética do Marceneiro. Prefácio: Mino Carta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
GASPARI, Élio. A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A Ditadura Encurralada, A Ditadura Derrotada. Série editada pela Companhia das Letras (São Paulo) entre 2002 e 2004.
JOSÉ, Emiliano. Jornalismo de Campanha e a Constituição de 1988. Salvador: Edufba; Assembleia Legislativa da Bahia, 2010.
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários – Nos Tempos da Imprensa Alternativa. São Paulo: Editora Página Aberta, 1991.
KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda – Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
MARCONI, Paolo. A Censura Política na Imprensa Brasileira (1968-1978). São Paulo: Global Editora, 1980.
Emiliano José
é professor-doutor (aposentado) em Comunicação e Cultura Contemporâneas
da Universidade Federal da Bahia, jornalista, escritor e integrante do
Conselho de Redação de Teoria e Debate